Capítulo 2 (o Trovão)

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Com a ação rigorosa do Interceptor no mar Dourado acabando com a ameaça pirata e a intervenção político-militar da Irmandade Azul, em poucos anos a Baía dos Afogados tornou-se a cidade portuária mais prospera da região de Thalema.
Várias facções existentes com fins ilegais foram dissolvidas. Dentre elas estava a facção do "Ultimo Vislumbre". Um grupo de assassinos mercenários altamente treinados e eficientes. Seu lema era: "Basta pagar para o alvo apagar". Sua maior vantagem era o fator surpresa quando precisavam chegar até alguém. As habilidades furtivas entre os membros eram quase lendárias, e por isso a facção tinha esse nome, por que as vítimas mal conseguiam ver o que lhes havia acontecido antes que fosse tarde demais. Habilidades de infiltração para se aproximar de figuras de poder elevado também faziam parte da "grade curricular" dos membros. Seu líder era um homem de aparência austera, físico atlético cabelo e barba castanho escuro, nariz proeminente, quase se assemelhando com um tucano chamado Vladimir Zoghb.
Conde Allan teve que montar um grande cerco para conseguir capturar o líder dos assassinos, e mesmo assim, à custa da vida de muitos soldados.
Após sua prisão, cerca de 68 membros da facção foram aprisionados na tentativa de soltar seu mestre. Suas execuções foram feitas em praça pública sob a acusação de irem contra a ordem e a lei do rei.
Isso, obviamente, causou uma grande comoção entre o povo da Baía, afinal, muitos inocentes que tinham o mínimo de ligação com os acusados foram interrogados e torturados a fim de conseguirem informações sobre os demais membros foragidos.
Dois meses depois, as coisas começaram a voltar à normalidade. Ainda haviam patrulhas de soldados rondando por Acanan, principalmente entre o Mercado dos Trapos e a Cidadela dos Ratos, áreas comumente habitadas por miseráveis da sociedade e toda sorte de patifes.
Um jovem assassino retornava para esta cidade mudada após passar um ano em uma missão de infiltração. Seu nome entre os seus irmãos de ordem era Trovão. Mas, agora não havia mais ninguém ali que o conhecesse desta forma.
Buscou informações entre membros da rede de espiões e descobriu sobre os acontecimentos recentes em Acanan. A morte de Vladimir foi um grande choque para ele.

Diante da tremenda força conquistada pela Irmandade Azul, não havia o que ser feito por um único assassino.
Durante semanas ele perambulou por tavernas e bordéis entregando-se ao torpor do álcool e à luxúria.
Havia treinado até a exaustão por diversas vezes para alcançar a maestria das habilidades exigidas por Vladimir, mas agora sem sua ordem não lhe restavam mais perspectivas de futuro.
Mas, tudo isso mudou em um momento oportuno. Enquanto degustava uma grande garrafa de rum, dentro de uma taverna de nome peculiar chamada "o Búfalo Bêbado".
Dois senhores de fazenda discutiam de forma acalorada. Um deles acusava o outro de ter roubado alguns metros de "bom pasto" quando colocou uma cerca dividindo seus terrenos. O outro homem tentava justificar sua metragem apresentando todos os cálculos feitos em um pergaminho timbrado. Mas o primeiro parecia pouco versado em matemática e se negava a aceitar o documento como verdadeiro.
Após alguns minutos o acusador agrediu o outro homem com um murro bem encaixado em seu rosto, atirando-o por sobre mesas e cadeiras com um inconfundível barulho se madeira de quebrando e o tilintar de talheres se chocando contra o chão de pedra.
Após a "briga", o agredido tentou levantar apoiando-se no espaldar de uma cadeira enquanto via o outro indo embora esbravejando impropérios e ameaças de morte.
Trovão aproximou-se ainda segurando a garrafa de rum e estendeu a outra mão calosa para o homem.
- Me parece que o senhor acabou de ganhar um inimigo declarado... - comentou ele.
O assassino pôde ver que o septo nasal do homem estava com um ângulo estranho.
Ainda trêmulo o homem aceitou o mão que lhe era dirigida, juntou forças nas pernas e ergueu-se.
- Esse sujeito desprezível... - resmungou o homem com uma fonética totalmente anasalada - A muito tempo ele vem tentando se apropriar de boa parte do meu sítio... Agora que consegui o registros de posse e metragem, coloquei uma cerca para por fim nessa maldita disputa. E ele me vem com toda essa agressão.
O assassino pediu uma outra caneca ao taverneiro; serviu uma quantidade generosa e a entregou ao homem.
- Segure isso... - disse ele.
- Não gosto de rum. - alegou o homem com a voz nasal quase indecifrável.
- Bem... Não estou conseguindo entender metade do que tem falado. Neste caso acredito que irá precisar do efeito entorpecente do rum.
O homem olhou do copo para assassino e entendeu o que viria a seguir, quando viu as mãos calosas vindo em direção ao seu rosto. Encheu os pulmões de ar e virou a caneca garganta abaixo num único gole.
Um barulho oco como um galho seco se partindo e um pequeno grito de agonia se espalhou pela taverna quando Trovão puxou o septo de volta ao lugar, fazendo todos em volta darem risadas da situação.
- Obrigado, eu acho... - respondeu o homem ouvindo sua própria voz voltar ao normal. - Me chamo Theofilo Monte Claro.
Trovão tomou a mão do homem e apertou num gesto de camaradagem.
- Muito prazer senhor Theofilo! Pode me chamar de Andorius Goliarth, ao seu inteiro dispor.

Após algumas horas de conversa e bebedeira, Andorius conseguiu seu primeiro trabalho desde que voltou de Sahmyra.
Para ele foi um trabalho extremamente fácil. Localizar o alvo, assassina-lo de forma a fazer parecer um acidente e recolher os vestígios de sua passagem ali. Isso, além das duas bolsas de prata encontradas escondidas debaixo do colchão na casa da vítima.
Para tirar qualquer suspeitas de cima de seu cliente, combinou de que ele deveria estar o dia inteiro dentro da taverna quando o trabalho fosse executado.
No meio do dia marcado, alguns lavradores chegaram com a notícia de um acidente horrível ocorrido com o Sr. Nash.
Andorius já havia chegado a taverna onde tudo havia começado. Ele viu seu cliente no balcão e logo após os lavradores indo contar a história do acidente. De onde estava percebeu uma tensão nervosa em Teófilo. Sorrateiramente, aproximou-se do balcão e chamou o taverneiro.
- Boa tarde, Sullivan! Por favor, uma garrafa daquele rum envelhecido e a maior tigela que tiver do seu ensopado de coelho!
- Ah!! Sim, claro! Agora mesmo Sr. Andorius!
Sullivan era o típico cozinheiro rechonchudo de pele bem clara, quase rosa, com pernas que afunilavam do quadril para o tornozelos e bigode e cabelos grisalhos. Seu avental estava sempre impecável e curiosamente havia uma bainha de espada em seu cinto onde ele trazia uma colher de pau bem grande. Ele havia feito sua fama na Baía dos Afogados com seu ensopado de coelho campestre a pouco mais de dois anos. Não tardou e conseguiu adquirir dinheiro para comprar a taverna no final da rua das Azagaias, próxima ao cais.

Theofilo que ouvia a história de como o Sr. Nash, que havia lhe agredido cerca de dois dias atrás, caiu da carroça e teve sua cabeça esmagada pela roda contra uma pedra, virou seu rosto quando Andorius fez o pedido e o cumprimentou com um meneio de cabeça. Andorius deu um leve tapa nas costas no cliente e aproveitou para entrar na conversa.
- Desculpe, mas acabei ouvindo a história de vocês. Que morte horrível!
- Verdade! Mas se quer minha opinião, ele bem que mereceu! - comentou um dos lavradores, que trazia um chapéu de palha pendurado com um barbante sobre os ombros.
- Era um valentão, isso sim! - comentou o outro.
- Eu realmente não consigo acreditar... - mentiu Theofilo tentando parecer incrédulo. - É bem verdade que temos nossas desavenças, mas jamais desejaria uma morte tão horrível a ninguém.
Andorius riu internamente dessa expressão convincente de seu cliente. Chegou a pensar que o sujeito teria uma forte vocação para o teatro.
Sullivan retornou com o pedido e o colocou sobre o balcão.
- Frank! Frank!? - chamou o cozinheiro.
Um menino com cerca de 9 a 10 anos de idade, de pele negra se aproximou do balcão vestido com sapatos lustrosos, bermuda cor de mostarda e um camisa de cordão branca.
- Pronto, pai! - respondeu o menino.
- Leve o almoço do Sr. Andorius até a mesa dele. E cuidado para não derramar nada!
Frank correu a pegar a bandeja, depositou a tigela com ensopado, a garrafa e a caneca e seguiu desviando dos bêbados pelo salão.
- Com licença! Obrigado! - Com licença! Obrigado! - ia repetindo ele até chegar a mesa.
Andorius deu mais uma batidinha nas costas de Theofilo se despedindo da conversa.
- Senhores, meu ensopado me chama! Lamento a perda de vosso amigo. Passem bem!
Quando Andorius saiu de perto o cliente se deu conta de que seu cinto estava um pouco mais leve. As habilidades do assassino era muito mais versáteis do que ele supunha.
O trabalho estava feito e o pagamento concluído.



Scaleth & CiaWhere stories live. Discover now