26 de outubro, Los Angeles, Calofórnia

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Harry,

sonhei com você.

Eu acordei com raiva. Que ousadia do meu subconsciente me trair assim, logo agora que eu começava a pensar menos em você.

Mentira. Não penso menos em você, não sei porque escrevi isso, desculpa. Acho que queria saber qual seria a sensação de escrever algo assim se fosse realmente verdade, mas suponho que não tenha sentido as coisas certas porque quando coloquei as palavras no papel agora me senti um mentiroso.

Vou tentar de novo, tudo bem?

"Não indagues, Leucónoe, ímpio é saber,

a duração da vida

que os deuses decidiram conceder-nos,

nem consultes os astros babilônios;

melhor é suportar

tudo o que acontecer."

Era assim que eu queria ter começado essa carta, porque agora já é noite e eu tive o dia todo para refletir sobre como eu me senti, mesmo quando desacordado, e acho que esse poema de Horácio é uma boa concretização disso.

O poema, num geral, é sobre como é terrível viver com a consciência do fim. Ele fala sobre como é preferível apenas viver e passar por tudo que nos é apresentado do que ter a sabedoria e, por consequência, a antecipação de que, em algum momento, mais cedo ou mais tarde, existirá um ponto final. O melhor é suportar tudo que nos acontecer, ele diz, do que refletir sobre as coisas enquanto as vivemos.

De certa forma, eu vivi por essas premissas e, sem nem saber, obedeci ao pai do carpe diem.

Quando o Universo me concedeu oito meses ao seu lado, poucas foram as vezes em que, com um estalo, a claridade do nosso remate me iluminou os pensamentos. O dia do meu sonho, e eu já chego lá, foi uma dessas vezes. Na maioria do tempo, eu só me permitia estar ali, com você, e aproveitar todas as coisas que te acompanhavam: a ambição ímpar, o barulho das ondas do mar, a confiança inabalável de um propósito, o sabor de menta com chocolate.

Mas agora, Harry, não consigo estar presente de verdade em Los Angeles. Eu me pego perguntando aos Astros pelo seu nome, pedindo um Sinal sequer, tentando interpretar sozinho as gravuras das cartas que o Tarô me entrega.

Hoje de manhã, quando acordei, me esqueci por um segundo ou dois de que não estava em casa. De que não iria para a praia te encontrar, de que não existe o seu sorvete favorito aqui e de que nós dois temos um país inteiro nos separando. Mas então tudo isso caiu sobre mim como um peso, e eu gostaria de dizer que foi um peso agradável, como um cobertor que faz a pressão nos lugares certos e me envolve até esquentar todas as extremidades do meu corpo, só que esse não foi o caso. O peso me sobrecarregou, junto dele veio a lembrança do sonho que me assombrou durante a noite, e a realização de que agora essa era minha vida: distante de você, indagadora e, se Horácio me permite dizer, ímpia.

O sonho todo foi algo que eu já vivi, mas com algumas mudanças meio bizarras que me assustaram um pouco. Além disso, um sonho assim nunca tinha me acontecido, um que mostra coisas pelas quais eu já passei. Já dormi e tive a sorte de sonhar com coisas que eu teria de enfrentar daqui há algum tempo, mas esse começou com a manhã em que eu recebi a carta de aceitação da UCLA pelo correio.

Eu nunca te contei sobre esse dia, nunca tive a oportunidade, mas agora eu tenho, então peço que você me perdoe se eu me estender um pouco nas sensações ou se minha empolgação parecer familiar demais, essa foi uma felicidade que sempre quis compartilhar com você e não pude.

we ended. and this is why. Where stories live. Discover now