CAPÍTULO 28

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Número Dois estacionou o caminhão frigorífico onde o enorme Nova Espécie indicou e suspirou. Ele não devia olhar aquele lugar, não devia reparar nos detalhes, não era um estudo de campo, mas deixou seus olhos vagaram pelo espaço, o estacionamento no caso, por um ou dois segundos, não conseguiu evitar.
Não conseguiu também evitar pensar no que o Número Um estaria pensando dali, uma vez que ele sim pôde examinar tudo.
Quando eram crianças, é claro que souberam da existência daquele lugar e sonharam ir para lá. Agora? Só tinham um desejo que era maior que a existência deles, era maior que presentes de aniversário e natal, maior que pescarias, piqueniques e festas. E era muito irônico que ele fosse recepcionado pelo tal Silent. Muito irônico na verdade.
O citado bateu na janela e sorriu. Número Dois ajustou bem o chapéu na cabeça, ainda que tenha pintado os cabelos, e sorriu de volta. Número Dois era o mais simpático dos dois, já Número Um odiava sorrir sem motivo. Dado que a vida deles era objetiva e sem distrações, ele praticamente não sorria. Devia ter sido divertido vê-lo se fingindo de simpático.
"Oi. Sou Silent. Eu estou trabalhando aqui a pouco tempo, então me desculpe se o fiz esperar. O que deseja?" Ele era mesmo o idiota que o relatório de Dois informava. Será que não sabia ler?
"Trouxe carne. Só me diga onde colocar e eu descarrego o caminhão."
"Carne? Mas nós não precisamos de carne, nós caçamos." Os olhos bicolores dele o olharam desconfiados. Dois não devolveu o olhar, eram olhos bons, puros e inocentes que o deixaram desconfortável.
"Veja, aqui está a nota fiscal e a ordem de entrega. Só me diga onde descarregar, eu descarrego e poderei ir embora." O gigante coçou a cabeça. Dois não resistiu a considerar se conseguiria derrubá-lo se fosse necessário. A conclusão foi torcer para não ser necessário.
"Ei! Amigão! Meu carro já chegou? Eu preciso voltar para a cidade." O Nova Espécie olhou na direção do recém chegado.
"Olha, cara. Essa carga é delicada, mesmo no caminhão frigorífico pode estragar, eu não posso arcar com isso." Dois insistiu.
"Talvez você devesse ligar para os caras que emprestaram o meu carro, você é amigo deles, não é, daqueles rapazes gêmeos, trigêmeos quer dizer. Eu tenho que..."
"Calem a boca! Eu preciso ligar para o tio Slade." Dois balançou a cabeça. 'tio Slade?' quantos anos aquele cara tinha?
"Você pode me dar uma carona, que tal? Pode me deixar naquele hotelzinho na rota trinta e cinco?"
"Se o amigo aí resolver meu problema, você pode vir, eu te deixo lá." Dois disse.
O outro sorriu para Silent.
"Silent, não é? Eu adorei o seu filho, ele é igualzinho a você. Seguinte, ligue para quem tem de ligar e libera o meu amigão aqui, eu estou cansado, só quero um banho e descansar."
O Nova Espécie concordou e entrou na guarita.
"Caramba, que caminhão legal. Posso entrar?" O outro perguntou. Dois abriu a porta do passageiro e ele entrou.
"O tio Slade disse que não sabe quem encomendou essa carne. Mas haverá uma festa aqui e é pra você descarregar a carne na cozinha do refeitório. Venha eu te indico o caminho." Ele foi andando e Dois manobrou o caminhão atrás dele. O refeitório era enorme, havia um lugar cheio de jipes parados e Dois deixou o caminhão ali. Ele abriu a porta traseira e antes que pudesse saltar para dentro o Nova Espécie saltou antes dele e pegou uma enorme carcaça congelada, ajeitou nas costas e saiu andando, como se não estivesse com uma carga pesada nas costas. Dois pegou outra carcaça e também a colocou nas costas. Na cozinha havia um quarto refrigerado e eles acomodaram a carne ali. Dois e o Nova Espécie fizeram algumas viagens e toda a carne do caminhão foi acomodada na camara refrigerada deles. Antes de saírem da câmara, Dois segurou o braço de Silent.
"Obrigado por averiguar e não me mandar embora simplesmente. Seria um prejuízo muito grande pra mim se essa carne estragasse." O gigante sorriu e Dois sentiu o desconforto aumentar, devia ser a porcaria dos genes.
"Sem problema. Eu sou novo na portaria. Eu gosto de trabalhar na fábrica, mas meu pai me aconselhou a aprender a desempenhar o máximo de funções possíveis."
"Seu pai é um bom pai, então." Dois disse, a bílis subindo a sua boca.
"Ele é o melhor pai que alguém pode ter. Quer conhecê-lo? Ele deve estar procurando alguma coisa pra fazer." Silent sacou o telefone e discou um número. O coração de Dois disparou.
Lá fora o caminhão já estava lacrado.
"Eu já fechei o caminhão para economizar tempo, tudo bem?" Silent esqueceu o telefone.
"Você é uma boa pessoa." Ele disse ao outro cara.
"É, obrigado, assim poderemos sair agora." Dois disse, entrou na cabine do caminhão, o outro também entrou e ele arrancou. Silent ficou acenando e sorrindo até saírem da Reserva.
Algumas quadras depois Dois soltou o ar que estava segurando.
"Cara! Quando ele disse que ia chamar Vengeance, eu reconheço que posso ter me mijado um pouquinho."
"Deixa de ser medroso, idiota. Vengeance está muito ocupado, não se metendo nas questões da Reserva. E sua clarividência se foi, ele está muito feliz acasalado e com filhos pequenos para distinguir suas premonições."
"Você descobriu isso tudo no pouco tempo que passou com eles?" Dois ficou admirado.
"Não, idiota, eu ouvi alguém falar isso. Deve ser verdade, ele não viu que isso aconteceria." Um estava intragável como sempre.
"Aumentem o frio aqui atrás. Estou em carne viva." Gabriel disse e Dois colocou o termostato no máximo.
"Ninguém o viu?" Dois perguntou.
"Eles se preocupam muito com o que entra na Reserva, não com o que sai. E Silent deu sinal verde para sairmos sem revista, uma vez que ele mesmo ajudou a descarregar o caminhão."
Dois revirou os olhos.
"Estou dizendo no caminho até o restaurante, imbecil."
Um o olhou com frieza
"Não sei de onde você tirou a idéia de que pode me chamar de imbecil. Mas é a hora da siesta deles, a maioria dorme nesse horário. E os únicos que poderiam sentir o doutor saindo, estão correndo atrás do próprio rabo."
"Calem a boca. Está tudo pronto no esconderijo?" Gabriel perguntou.
"Sim, chefe. Tudo ajeitado. Eu e Dois arrumamos o espaço, instalamos abafadores de sons nas paredes e janelas e o ar condicionado é o mais forte do mercado. Vai parecer que você está na Antártida." Um respondeu.
"Ótimo. Há muita coisa para fazermos. Um, você compartilhou sexo com Chimes como eu pedi?" Um se mexeu na cadeira desconfortável.
"Não, chefe. Ela não estava interessada." Dois imaginou como Chimes deveria ser, linda, alta e com um corpo perfeito. Um devia ser louco.
"E você se considera simpático. Você insistiu? Você a tocou? Você poderia até ter a forçado, elas gostam." Gabriel perguntou, sua voz indicando que estava decepcionado com Um. O coração de Dois doeu como o de Um devia estar doendo.
"Eu fiquei com medo do disfarce não dar certo, você sabe chefe, eu sei que pintei os cabelos, coloquei aquelas lentes de contato e essas coisas na cara, mas eu tive muito medo de ser descoberto." Era uma boa resposta, mas o chefe era esperto, muito esperto e Um parecia indiferente, mas sua testa suou.
"E resistiu a tentação? Não procurou Vengeance?" Gabriel perguntou.
"E pôr em risco o meu disfarce? Já bastou ficar pensando em comida todo o tempo em que estive perto de Romulus." Um respondeu e apertou os punhos.
"Você não sabia dele? Ele seria útil, muito útil!" Dois perguntou. O doutor estava lá atrás e os ouvia perfeitamente.
"Ah, sim, é claro que eu sabia, eu sabia também que ele podia ler mentes, eu sabia sobre um Nova Espécie com um poder desses e o deixei ser criado por um cientista idiota que o tratou como da família e o estragou. Sim, número Dois, eu sabia!"
"Desculpa, chefe. É só que..." Dois começou a dizer, mas achou melhor se calar. Eles eram superiores, carinho, afeição não era para eles, Um o mataria sem pensar duas vezes se fosse necessário e ele faria o mesmo, então por que render aquele assunto?
"É só que você é um idiota. E está me deixando preocupado. Vou contar para nosso pai."
Gabriel riu, na verdade gargalhou.
"É sério? Vocês chamam o Andrew de papai?" Dois olhou para Um. Ele ficou possesso.
"Pare ou chutamos você pra fora dessa câmara frigorífica e ainda olharemos enquanto você queima como um vampiro no sol. Nosso pai não precisa de você, você é só um idiota, muitas das coisas que você faz, nem sabe o que está fazendo. Ele apenas queria tirar dos Novas Espécies a vantagem que você representava, não importa se você morrer. Ele inclusive disse que se você causasse dificuldades eu poderia estourar os seus miolos." Um disse e pegou a arma do porta luvas e a destravou.
" Acha que tenho medo de morrer? Quer abrir a porta do caminhão? Abra e eu correrei para o sol. Não me importo com nada, não sou nada, seu idiota." Dois não olhou para Um. As palavras dele foram sinceras, seu coração que batia de forma estranha, não se alterou quando ele falou.
"Por que veio, então?" Dois perguntou. Um continuava acariciando a arma e pensando. Ele gostava de matar, e uma oportunidade dessas era difícil de resistir.
"Eu me cansei de ser usado por eles. Cansei de salvá-los e ninguém nem me agradecer, cansei dos trigêmeos me ordenando o que fazer, sei lá."
Ele queria uma família. Dois o entendia. Foi por isso que o escolhido para entrar na Reserva foi Um e não ele, o pai deles sabia das coisas.
"Bom, chega de conversa. Saibam que foi uma grata surpresa conhecer vocês. E vou adorar ajudar o seu papai a destruir os Novas Espécies."

BELLSTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang