A mulher negra de pele branca

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Gorete

Trinta e oito anos de existência e eu não tenho mais nenhum desejo para realizar. Já viajei para todos os lugares que eu queria conhecer, já experimentei todas as comidas que abriram meu apetite, já fiz sexo com todas as pessoas pelas quais eu me atraí e nesse processo eu também amei. Já estou enfadada de ir a shoppings, comprar roupas, sapatos, joias, bolsas e acessórios, meu closet está abarrotado de coisas que eu sequer uso. Enfim... Tédio me define. Essa é a vida sem propósito da herdeira da linha aérea MoonAir.

Um sorriso brota nos meus lábios quando me lembro da forma trágica que meu pai morreu. Eu tinha uns vinte e quatro anos quando decidi me libertar das correntes do medo e revelei ser uma mulher. O coitado teve um infarto fulminante e eu como filha única herdei todo seu patrimônio. Chega a ser ridículo e cômico.

Levanto da cadeira de Omar e fito meu reflexo no espelho da parede de vidro. Eu mal posso acreditar que aquele "menininho" inseguro, tímido, fechado e depressivo se tornou quem eu sou hoje, uma mulher firme, empoderada e decidida.

Omar entra no escritório falando no celular e eu me viro para ele. Assim que ele termina a ligação, me fita com um ar fatigado.

- Gorete? O que você está fazendo aqui de novo nessa semana?

- Não posso ver como estão indo os negócios?

- Você não entende nada de negócios, - franzo a sobrancelha direita e Omar entende que eu não gostei nada do seu comentário, embora seja a mais pura verdade. Gosto disso em nós, ele me conhece suficientemente bem para até ler os traços do meu rosto e meus gestos, sem dizer nenhuma palavra. Ele limpa a garganta e se corrige: - pelo menos não os da companhia. Você só está aqui porque ficou entediada em casa, acertei ou acertei?

Bufo. Não dá pra mentir pra Omar.

- O que posso dizer se olhar para tua cara de palerma engravatado me tira da mesmice?

É a vez dele bufar e ir direto se sentar na cadeira até onde eu estava agora pouco brincando com os objetos em cima da mesa.

- Você deveria se interessar mais pelos negócios. Alguém pode falir a empresa da sua família. Você não sabe fazer nada da vida, se ficar na miséria terá que pedir esmola em algum beco sujo. Você sabe que não há muitas opções pra uma travesti no Brasil - ele comenta com uma perversidade nata.

- Nossa, como você é pessimista! Duvido que alguém tenha coragem de colocar o nome da minha família na lama, todos dependem do sucesso financeiro dessa linha, além do mais, para isso e mais, eu tenho você. Eu confio na sua conduta.

- Queria eu ter essa sua vida mole, Gorete. Aliás, por que não para de me atazanar e vai arrumar algo mais interessante pra fazer?

- Já pensei em várias coisas e nenhuma me instiga o suficiente - analiso minhas unhas grandes bem feitas, pintadas de azul-marinho.

Omar arfa:

- Pelo amor de Deus, Gorete. Eu preciso trabalhar. Hoje é sexta-feira. Por que não vai a algum restaurante? Fazer uma boa refeição, tomar um bom vinho, torrar o dinheiro que administramos para você? Hum?

- Não é uma má ideia. Vou passar em casa e tomar um banho de banheira bem relaxante... - o provoco e ele passa as mãos do rosto até o cabelo castanho claro, totalmente impaciente. Solto uma risada. - Tchauzinho Omar, espero que aproveite sua sexta-feira resolvendo pepinos cabeludos... - digo rindo e saio de sua sala com um tom de escárnio.

Omar tem essa pose, mas ele ama as minhas visitas surpresas, sei que trago leveza para o ambiente pesado de trabalho. Somos amigos desde crianças. Seu pai era amigo do meu pai. Ele se aposentou anos depois de assumir a posição do meu pai e Omar o substituiu na presidência. Não querendo ser hipócrita nem nada, mas ele batalhou para ocupar essa cadeira. O cara é realmente dedicado como executivo.

Mancha de batom (Trans/Bissexual)Onde histórias criam vida. Descubra agora