Espirais

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Kimberly

O maldito me deu três dias para sumir da vida de Gorete. Não tenho tempo, nem energia para lutar contra isso, principalmente levando em consideração que é a minha vida e a da minha família que estão em risco. Chego em casa cansada de ter passado a noite inteira acordada sob o jugo de alguém que sequer descobri o nome quando eu preferia mil vezes ter aproveitado a madrugada transando e ainda terei que enfrentar minha avó e minha filha, sorte que desde que eu me tornei uma garota de programa, eu me lapidei quando o assunto é mentir e omitir para proteger minha reputação de mãe solo, órfã, criada pela avó e que trabalha a noite para manter a casa.

Elas estão tomando café e me cumprimentam como de costume. Me sento na mesa respirando fundo e me sirvo uma xícara de café.

- Está tudo bem por aqui? - pergunto para ganhar tempo e tomar mais coragem de dar a notícia de que iremos nos mudar de Goiânia, de preferência para algum território da Amazônia.

- Sim, mãe! A senhora que não está com uma cara muito boa, né? O trabalho foi cansativo essa noite? - Camilinha é quem responde investigativa enquanto se delicia no seu achocolatado.

- Nem fala! - solto um ar de exaustão. Se ela soubesse o inferno que eu passei!

- Cê está com cara de que quer falar alguma coisa, minha intuição não me engana, te conheço menina, então desembucha, Kimberly! - minha avó delicada como sempre. Aproveito a abertura e decido falar de uma vez.

- Teremos que nos mudar, a empresa me transferiu.

- É o quê? Ficou doida mãe? Como assim nos mudar? E a minha escola, estou praticamente no final do ano, e meus amigos? Meus planos? - Camila vocifera. Olho para minha avó, para ver a reação dela, mas ela continua tranquila, comendo seu pãozinho com manteiga e bebendo café com leite.

- Eu não tenho culpa, ué! Eu não pedi por isso e não posso ficar desempregada agora.

- Que papo besta é esse Kimberly? Desde quando existe transferência nesse ramo? - vovó indaga e eu fico pasma com o teor de seu inquérito.

- Não entendi o que a senhora quis dizer! — pergunto com minha voz sumindo.

- Deixa de se fazer de tonta, Camila e eu já sabemos que você trabalha em um puteiro e não é de hoje.

Estou chocada.

- Como assim? - gaguejo com as mãos trêmulas.

- É isso aí mãe. Nós suspeitávamos, até termos certeza. Sabe como é, né? As pessoas comentam e você nunca fala nada do seu trabalho, nunca fez amigos lá, ou mostrou qualquer prova de que realmente trabalhava de auxiliar de serviços gerais. Então, a bisa e eu te seguimos uma noite e ficamos cientes de tudo.

- Meu Deus! - é o que eu consigo expressar. - E por que não me falaram nada? Vocês não me odeiam, não sentem nojo de mim?

- Claro que não, mãe. Nós entendemos que você se sacrifica pra cuidar de nós duas e nós te amamos e te respeitamos, porém, isso não quer dizer que a gente concorda ou apoia. Por que acha que eu quero tanto estudar, me formar em alguma faculdade e ter um bom emprego? Pra te tirar dessa vida, poxa!

Não aguento. Começo a chorar compulsivamente. Isso é lindo de se ouvir de uma filha e da mulher que me criou sem julgamentos nenhum. Me levanto e as puxo para um abraço. Nós três choramos nos braços umas das outras.

- Seja lá no que for que a senhora tenha se metido, é só nos dizer, mãe, não precisamos nos mudar, nós três somos mais fortes juntas e podemos resolver qualquer coisa!

- É isso aí, se for algum macho escroto, a gente soca as bolas dele! - dona Jussara reforça e Camila e eu nos pegamos rindo dela que nos olha sem entender.

- Ah minha filha! Vovó! Eu amo vocês! - as aperto de encontro ao meu peito.

Nosso gesto de amor, carinho, lealdade e confiança é interrompido pela campainha.

- Deixa que eu atendo! - Camila sai correndo e eu continuo parada, abraçada a minha avó.

Alguns instantes depois, Camila aparece com Gorete ao seu lado.

- Você tem visita, mãe - minha filha diz com uma carinha sapeca e meu coração acelera. O perfume e a elegância dessa mulher é intensa pra pouco espaço. - Bom, eu tenho que ir pra escola.

- Eu vou com você, Camilinha, tenho que ir até a feira, esse negócio de dieta está me enchendo o raio do saco.

Não consigo tirar os olhos de Gorete. Só de imaginar que eu a julguei errado, me sinto péssima. Agora entendo o quão importante um diálogo é. Mas eu não posso contar para ela que fui ameaçada e por isso me afastei dela. Terei que mentir mais uma vez e meu coração dilacera. Eu construí minha vida em cima de uma mentira e como posso reconstruir a partir da verdade sem causar danos? Ainda há esperança para recomeçar?

Ouço Gorete rindo do comentário da minha avó mas as vozes delas parecem distantes demais.

- Como a senhora está, dona Jussara?

- Estou ótima minha filha, graças a Deus, aos médicos e a você! Nos vemos depois!

É impressão minha ou elas armaram uma espécie de complô para me deixarem às sós com a Gorete? Vejo minha filha já com a mochila nas costas passando com minha avó segurando uma sacola de supermercado, de relance, como se eu estivesse enxergando vultos ao meu redor e elas se despedem de Gorete.

- Kimberly, precisamos conversar - só dou conta da realidade de novo ao senti-la segurando meu braço. É aí que volto à mim.

- O que você está fazendo aqui? Já não te disse que não quero nada com você? - esbravejo tentando disfarçar minha agonia.

- Eu sei muito bem porque você está fazendo isso. Foi meu irmão, não foi? Que te coagiu a se afastar de mim?

- Irmão? - repito embasbacada.

- É uma longa história, mas é, meu irmão. Você pode confiar em mim, Kimberly. Se ele te fez alguma coisa, você pode me contar! Eu vou te proteger daquele monstro, não vou deixar que ele faça mal algum a você ou a sua família. Eu já te protegi uma vez e sou capaz disso outra vez e muito mais!

Minhas pernas ficam bambas. Sua promessa mexe comigo de uma forma avassaladora. O mais interessante nisso é que, eu não preciso que ela me proteja, eu sempre me virei sozinha, sou uma mulher forte e independente, mas seu gesto é nobre e comovente.

Desabo e disparo a contar tudo o que sei, desde que a tal Sofi apareceu lá na boate até o que houve ontem a noite, e ela também me conta tudo o que sabe. Estaco estupefata. Tudo faz sentido. Mas a minha única preocupação é saber se ela ainda ama ou tem interesse em Denise, agora que ela está de volta.

Gorete começa a rir.

- O que foi, qual a graça? - isso me chateia.

- Kimberly, você não existe mesmo. Eu te conto tudo isso, e vem me perguntar se eu quero reatar com a Denise?

- Mas é claro. Eu quero saber se você está mesmo a fim de mim, ou eu sou apenas uma barriga de aluguel pra você?!

Gorete se aproxima de mim e põe a mão direita no meu rosto, me fixando com ternura.

- Você é muito mais do que um útero substituto. Sou grata pelo universo ter nos unido dessa forma em um primeiro momento, mas você, Kimberly, é uma mulher e pessoa incrível, independente disso, e se tivermos que ter um filho juntas, será apenas uma consequência da nossa escolha de darmos uma chance pra essa paixão que estamos sentindo. Basta você dizer sim pra nós.

Não tenho o que falar, simplesmente pulo no pescoço de Gorete e a beijo com todo tesão e sentimento até então reprimido.

Mancha de batom (Trans/Bissexual)Where stories live. Discover now