A gente se acostuma, mas não devia

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(...)

(Ana)

   Vitória vira meu corpo em sua direção, suas mãos ainda em minha cintura. A boca entreaberta. Afasto uma mecha de cabelo de sua pálpebra e me perco em sua íris, hoje em um tom verde-alaranjado. Ela se dá um passo em minha direção, então fecho meus olhos, em expectativa. 

   Então me empurra pro lado, passando reto em direção a sala. E volta com meus óculos em mãos. Ela só pode estar de sacanagem.

   - Tu só pode estar de sacanagem. - digo.

   - Oxe mirnina, tá achando que eu sou tarada? - fala, carregando o sotaque - Tava só te ajudando.

   - Tu bem podia ser nessas horas, Vitória. - pego meus óculos de sua mão e ela se afasta com um sorriso, convencida.

(...)

   O almoço com Marcella é tranquilo e passamos o resto do dia entre risadas, conversas e olhares discretos. Nos despedimos de nossa amiga no final da tarde, com um clima leve, contrastando com a tensão que vivemos de manhã. O sol se esconde entre as nuvens e sentimos um início de garoa enquanto caminhamos de volta para minha casa, onde Vi vai dormir hoje, por termos uma viagem logo cedo. Aperto o passo. Vitória entrelaça as nossas mãos e me faz diminuir o ritmo.

   - Assim nós vamos chegar encharcadas. - digo.

   - Tu vai se molha de qualquer jeito, Ninha, proveita. - Ela responde e fecha os olhos, jogando a cabeça para trás. Dou risada.

   - Tá bom. Mas vou entrar no banho primeiro. - rebato.

   - A gente toma junto. - fala, inocentemente. Meu coração acelera. - Brincadeirinha. - Me olha com um sorrisinho de canto, provocativo. Eu nego com a cabeça, atordoada. Acho incrível a capacidade que ela tem de me deixar tonta, só com palavras.

   - Tá vendo esse tanto de carro, Ana? - Ela muda o rumo da conversa, do nada.

   - Tô. - respondo, observando o trânsito habitual de São Paulo. - Que que tem?

   - Cê não acha doido as coisas que a gente se acostuma? 

   - Como assim? - pergunto.

   - Hoje em dia as pessoas acham normal passar 2, 3 horas no trânsito todo dia. Acham normal se estressar, xingar, perder a cabeça. Isso as que saem de casa. Tem as que se acostumaram a passar o dia todinho na frente de um computador, sem nem ver a luz do dia. Pessoas que morrem de medo de mostrar que são imperfeitas, num mundo que todo mundo parece perfeito...

   Ela para o discurso e se abaixa para acariciar um cachorrinho deitado debaixo de uma tenda, se protegendo da chuva. Me abaixo do lado dela e espero ela continuar. Quando se levanta, vejo seu olhar distante, dentro do seu próprio mundo. Continuamos a caminhar.

   - ... Se acostumaram a dormir mal com o tanto de barulho da cidade, que nunca dorme. Se acostumaram a ver milhares de pessoas nas ruas todos os dias, sem enxergar nenhuma delas. Se acostumaram tanto com plástico, que tudo que é natural parece que dá trabalho. Perderam o costume de olhar no olho. - Ela me encara. - E assim a gente vai perdendo a noção de carinho, de afeto... - Seu polegar acaricia minha mão, e ela conclui: - coisas que a gente se acostuma, mas não devia. 

   Paro de andar. Ela se vira e me olha, confusa com meu silêncio. Agarro sua nuca e a envolvo em um beijo.

(...)











Boa noite procês.


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