CONT...

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— Meu colega e vizinho Adalberto ganhou uma promoção, ele precisa morrer. 

Firmino ouviu um estalo de língua, a seguir um camião buzinando, uma criança gritar e um riso animalesco de deboche. Pensou no documentário de dois minutos que passava na TPA* e lembrou que uma vez ouvira que havia um povo que falava com tiques, só não lembrava o nome, mas o  estalo parecia igualzinho. 

— Vai fazer ou não? — ele questionou.

— Sim — um leão rugiu —, o que eu ganho em troca?

— Eu trouxe ouro para você, ouro puro — Firmino tentou dizer, mas foi interrompido. 

— Essa terra não é mais a mesma, Firmino. As pessoas se esqueceram de mim, das suas tradições, dos seus deuses e aderiram a outras ideias. Eu não disse o meu nome disse? Firmino questionou mentalmente. 

— Esqueceram que temos fomes, esqueceram de visitar seus deuses e os alimentar com presentes. Os poucos que se atrevem a vir até aqui, não  servem para todos nós. Nós temos fome, Firmino. 

—Eu trouxe ouro.

— O Ouro é sobrevalorizado, Firmino. Um homem faminto não procura sustento, procura? A menos que você trouxe as duas coisas.

— Não. O homem da tradição, o quimbandeiro, disse que o ouro é suficiente... E... ele... me garantiu.

O medo se espalhava pelo corpo de Firmino, tão rápido quanto o sangue bombeado.

— É sábio confiar num ancião, é insensato confiar num homem cujo único comprometimento é com o dinheiro dos seus clientes. 

Então, a figura se aproximou de Firmino e seu peito desabou. Sua tez era vermelha-sangue, com marcas brancas ao redor do corpo. Seu rosto era  afiado, com queixo e nariz pontudo. A cabeça completamente careca e com  linhas verticais ao redor da testa. As enormes orelhas continham brincos feitos com outras orelhas, orelhas humanas putrificadas e um pedaço de  pele de cabra cobrindo a cintura.

Firmino caiu no chão e viu a criatura sorrir, seus dentes eram aguçados e pareciam pequenas facas. O cheiro a seguir foi insuportável e fez Firmino  ter ânsia de vomito. 

—Mas não se preocupe, Firmino. Nós damos um jeito.

Firmino ouviu uma mulher gritando por ajuda e vozes masculinas rindo dela. Gatinhou, levantou-se aos tropeços e correu. Sua mente girava e seu coração retumbava no peito. Ele sabia que precisava fugir dali o mais  rápido possível. 

Ele sentiu um puxão no braço esquerdo que o fez perder o equilíbrio e estatelar-se no chão. A criatura estava de pé a sua frente, seus olhos brilhavam numa cor amarela doentia. Firmino percebeu que não eram realmente olhos, mas que a luz bruxuleante vinha de algum lugar dentro da cabeça  da criatura e refletia sobre os buracos oculares vazios. 

— Não se preocupe, seu contrato foi aceite.

Firmino ouviu o som característico de metal roçando metal.

— Por favor não — ele implorou.

A criatura retirou um punhal da lateral da sua veste, era branco marfim e tinha restos de sangue na lâmina serrada. Não era feita de metal, mas isso  não a tornava menos assustadora. 

— Os deuses e os espíritos dessa terra estão cansados e famintos, Firmino. Nosso próprio povo nos abandonou.

Mãos grossas e calejadas que pareciam patas apertaram o seu ombro, ele sentiu outro puxão, como uma cãimbria se alastrando por todo o corpo. Sentiu uma corrente fria transpassando o seu peito, e depois a dor lancinante. Ele gritou, mas sua voz era fraca e parecia abafada. Seus dedos dos  pés se contorceram e depois pararam. 

Ainda restara um fiapo de vida no corpo de Firmino, enquanto era arrastado pela floresta. A criatura sabia disso, por isso começou a assobiar, fazendo-o ouvir e ver coisas. Coisas felizes e prazerosas. Seu último pensamento antes de o mundo se tornar um lugar frio, escuro e silencioso foi que a  criatura mostrava coisas felizes para que a carne não estragasse. Ela sabia  que às vezes, quando a presa se assustava, a carne perdia o gosto.  Era uma teoria, mas uma teoria excelente.



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*Televisão pública de Angola

Histórias Fantásticas de Uma Terra LongínquaOnde histórias criam vida. Descubra agora