03. Um passado a ser revelado

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- Você tem certeza?

- Não questione minha decisão! Faz séculos que conduzo nossa horda com sucesso!

- Com todo respeito... Minha rainha... Se fizer isso, não se lembrará mais de nosso povo... Não se lembrará ao menos de quem é!

- Já está decidido! Essa espécie, com suas bombas e fábricas, se alastra por esse mundo como se pudesse fazer tudo que quer. Se não fosse por nós, ainda estariam nas cavernas!

Na lateral do imenso castelo de gelo, sobre a densa lava vulcânica, flutuou uma enorme embarcação. Não havia velas, mas à proa tinha um ser de tamanho colossal, remando com os próprios braços. No lugar de uma das mãos, uma pá maior que uma árvore centenária, servindo de remo para conduzir o casco de pedra. Lançou a corrente sobre uma estátua, formada por uma criatura petrificada. Atracou.

Na cabeceira do extenso salão, a rainha e seu capitão de tropas abriram suas asas. A multidão entendeu o sinal e se levantou.

- Você saberá como me encontrar, meu capitão.

- Quando encontrá-la, como farei para que se lembre dessa vida?

Ela ignorou a pergunta e iniciou um discurso inflamado.

- É chegada a hora da fertilização de sacrifício...

A cada frase dita, no dialeto de seu reino, todas as criaturas reagiam com urros lamentosos. Cada um naquele recinto possuía características únicas, variando agressivamente de massa corpórea, cores, texturas, quantidades de membros, existência de chifres, formas das cabeças e sonoridades.

- Sendo assim, para que o ritual de passagem se concretize, já temos um exemplar feminino daquela espécie, bem como um voluntário compatível para a cópula.

O condutor da embarcação adentrou o salão. Trazia consigo o couro de um enorme animal, típico de suas terras de origem, usado como bolsa. Na altura do quadril esquerdo, de dentro do couro de seu troféu de caça, gritos e movimentos desesperados, totalmente insignificantes diante do cenário monumental.

Alguns dos seres presentes correram na direção da líder, assim que ela recolheu de volta as enormes asas. Amontoaram-se rapidamente à frente da elevação onde a rainha se encontrava. Ela caminhou, obstinada, usando seus corpos como escadas. Um deles, de porte menor, teve seu corpo parcialmente esmagado, mas não se manifestou, botando sua própria integridade abaixo da servidão.

O condutor do barco balançou ferozmente os braços, a fim de se livrar dos resíduos de lava. Algumas sobras respingaram sobre uma das criaturas, causando grunhidos esganiçados de reclamação. Caminhou até uma das paredes de gelo e nela encostou a mão e a pá. Um buraco se abriu devido ao derretimento causado pelo calor intenso, dentro do qual enfiou seus braços para resfriá-los. As paredes eram muito espessas, permitindo a repetição desse gesto por milênios sem que os danos fossem significativos.

- Venha, barqueiro! Traga-me a espécime!

De dentro da bolsa, o navegante arrancou um ser que se debatia desesperadamente. Tratava-se de uma mulher trajando um uniforme militar cinza. Foi erguida pelo braço. O indivíduo monstruoso a suspendeu com enorme facilidade, visto que um único dedo do barqueiro já cobria seu braço por inteiro. Ele se agachou e a largou, fazendo-a cair de alguns metros de altura e fraturar gravemente as pernas.

A rainha se aproximou do barqueiro, formando uma enorme sombra sobre a mulher e o sujeito agachado. Ele permaneceu na mesma posição, de cabeça baixa e seus oito olhos fechados, diante da mulher que se debatia de dor sobre o chão. Sua líder pôs os seis dedos em seu ombro, encostou a pelve em sua cabeça e, com a outra mão, afagou a casca áspera de sua nuca.

- Muito bem, meu fiel guerreiro. Nosso povo será eternamente grato por suas viagens à superfície.

Ele se levantou e caminhou, dirigindo-se de volta à embarcação de pedra. A líder pôs-se a falar, olhando na direção da mulher.

- Vocês, seres nojentos! Vocês e seus exércitos supremacistas... Pagarão por nossa ajuda!

Abaixou-se e fincou a ponta da unha no braço da mulher, arrancando mais gritos de dor.

- Não pedimos que criassem símbolos... - prosseguiu, girando a unha, levemente.

Com o movimento, o braço da mulher foi arrancado, a partir da altura que continha a faixa com a suástica impressa. Desmaiou de dor.

- Venha cá, meu querido servo!

Surgiu de dentro da multidão o único ser de dimensões humanas. Contudo, diferente de seu tamanho, a aparência era fruto de uma estranheza que só aquele lugar poderia fornecer. Moveu-se com o apoio de sua única perna, a qual tinha a mesma largura de seu tronco. No lugar dos pés, a extremidade inferior continha uma massa carnuda, que se contorcia feito uma lesma a carregá-lo. Na ponta dos braços, tentáculos tão numerosos que talvez nem seu próprio e único olho fosse capaz de contar. Abaixo do grande e desproporcional globo ocular, um buraco vazio e escuro, do qual saía uma espécie de língua exageradamente comprida, com uma formação protuberante na ponta, parecida com a cabeça triangular de uma cobra. Enquanto se aproximava de sua rainha, a língua se projetava cada vez mais para fora do buraco que carregava em sua face.

A imponente chefe alada expôs sua língua, também enorme, embora proporcional. O ciclope recebeu uma lambida pegajosa de sua líder maior, virou-se para a multidão e emitiu ruídos de comemoração.

- Você tem a minha bênção, pequeno.

Vagarosamente, o sujeito grudou alguns de seus tentáculos sobre o tecido do uniforme que cobria a mulher desmaiada. Com movimentos bruscos, arrancou-lhe as roupas, rasgando-as em pedaços.

- Todos sabemos a história deste humilde servo. Sua progenitora, heroína de nosso reino, foi pega desprevenida pelos povos da superfície.

Enquanto os tentáculos arrastavam o corpo da mulher para perto de si, ela acordou, aos gritos, tentando se desvencilhar da enorme língua que deslizava sobre seu corpo.

- Eles ousaram depositar sua semente em um de nós!

Os urros da multidão se intensificaram.

- Eles sujaram a linhagem... Nossa linhagem!

Aos berros, a multidão ergueu seus braços e tentáculos. Os gritos raivosos da mulher foram abafados pelo tumulto.

- Hoje o fruto dessa ousadia terá sua vingança!

Os tentáculos seguraram a mulher firmemente, impossibilitando qualquer movimento.

- Em breve, eles saberão o que é ter um de nós entre eles!

Os urros de comemoração atingiram seu ápice.

A enorme língua deslizou pela coxa da mulher, deixando um rastro pegajoso de cor azulada. As feições desesperadas pareciam aumentar o interesse do ser medonho, impassível diante de qualquer tentativa de luta.

A rainha caminhou na direção da lava.

O olho do ciclope se fixou na barriga da mulher enquanto ouvia seus urros desesperados. Apreciou o volume de seu ventre crescendo enquanto sentia o gosto de suas entranhas.

À beira do rio de lava, a líder maior hesitou. "Pai das profundezas! Se é o seu desejo, que eu renasça então, num corpo dessa repulsiva espécie".

Um silêncio sepulcral se instalou repentinamente. A rainha se jogou, desintegrando por inteira em meio às rochas incandescentes. O enorme olho do ciclope se fechou enquanto recolhia sua língua de dentro da mulher. Esguichou a última parte de seu prazer sobre o corpo da vítima.

Na grande rocha sagrada, onde a líder fez trono durante séculos, o capitão avistou uma pedra vermelha, repousada sobre um pergaminho.

- Levem a espécime para o barqueiro! Ela tem que chegar à superfície antes que nossa rainha renasça! - ouviram o capitão gritar.

Nas primeiras linhas do pergaminho, instruções sobre como usar os poderes da pedra vermelha para entrar na mente de um humano. "No tempo ordenado, eu irei lhe buscar, minha rainha. Então trarei de volta sua memória".

A protegida e o demônioWhere stories live. Discover now