04. O incidente

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- Ele está falando comigo...

- Como assim?

- É... Dentro da minha cabeça...

Um novo estrondo de trovão ecoou pelo ambiente. Rachaduras brotaram no teto e nas paredes, através das quais invadiu uma forte luz vermelha, se intensificando à medida que o concreto cedia. Sob o reflexo da luz misteriosa, finalmente foi possível notar o quão decrépito se encontrava o local, repleto de poeira e objetos abandonados. O ser misterioso foi revelado pelos raios cintilantes. Contudo, devido ao seu tamanho colossal, constatou-se que, de sua forma, era possível enxergar apenas uma perna, visível até o joelho onde a altura da porta permitia ver. Enfim, confirmaram de que aberração grotesca se tratava perseguidor sobrenatural.

Além de sua natureza titânica, o que se notava na perna era uma aparência surreal. Um tom de vermelho intenso, com textura semelhante a uma chapa de metal, jateada com areia quente. Do joelho, brotavam espinhos afiados, cada um tendo em média o comprimento de um braço humano. O enorme pé possuía apenas dois dedos preenchendo sua largura, ostentando unhas negras e brilhantes, lisas e rígidas, parecendo machados afiados.

- Isso não pode tá acontecendo...

Metade do teto rompeu-se por completo e os pedaços foram sugados na direção dos céus. Ao olharem para cima, a moça e o estranho avistaram nuvens incandescentes, formando uma manta de brasa que cobria até onde era possível ver.

Ela tornou a receber as frases em dialeto estranho, dentro de sua cabeça, sem saber o porquê de compreender seus significados. "Liberte-se dessa vida medíocre, minha rainha! Lembre-se de quem é!".

- Rainha... Ele me chamou de rainha...

Enfim, os dois oprimidos se entreolharam, agora iluminados pelo reflexo do céu em chamas. Ela o reconheceu imediatamente, pois se tratava do motorista da linha de ônibus que a transportava com frequência.

- Acha que sou rainha...

- Do que você está falando, garota? A gente vai morrer aqui...

O motorista foi alvejado por um feixe de luz azul, originado de uma rachadura na parte que restava do teto.

- Eu não consigo me mover...

Toda a estrutura do precário cômodo se desfez em pó e foi levada pelo vento, possibilitando a visão completa da rua. Contudo, a rua e a cidade pareciam não mais existir. Viram-se em meio a um deserto escaldante sem fim, coberto pelo inexplicável céu de lava. O medonho titan, agora visível por completo, erguia uma de suas mãos, de onde saía um potente feixe de luz azul, estendendo-se até um redemoinho de nuvens negras que contrastava com o rio de fogo que cobria tudo. Os três bizarros olhos se fixaram na jovem apavorada.

Os corpos dos observadores indefesos começaram a levitar, subitamente. O homem permaneceu a poucos metros do chão, enquanto ela prosseguiu se afastando do solo.

A enorme criatura expôs seus dentes pontiagudos, num sorriso macabro e deformado. Estendeu um dos braços gigantescos na direção da moça, acompanhando sua levitação com a ponta do indicador.

Diante de todo o desespero, ela cogitou que a falta de histeria se justificava pelo choque emocional, no entanto, percebeu que seu corpo parou de responder, impedindo qualquer manifestação.

Suas costas arderam. Sentiu toda a pele se esticar, causando uma dor dilacerante. Ossos estalaram como se fossem romper. Contraiu os olhos enquanto sentia uma forte pressão em todo o corpo, de dentro para fora.

- Filho da puta! - finalmente, conseguiu soltar a voz.

Durante a subida, passou pela outra mão da gigante criatura. Notou que sobre a palma, de onde partia a luz azul, havia uma grande pedra vermelha. O estranho minério se reduzia, desfazendo-se aos poucos em líquido e respingando sobre o corpo flutuante do motorista indefeso. Ela continuou levitando até uma longa altitude, de forma que o gigante passou a ser apenas um pequeno ponto visível.

Sentiu a pele das costas se rompendo. Seu vestido rasgou-se por completo, ejetado pelo estranho volume que brotou de seu dorso.

- Que merda é essa?!

Olhando para os lados, na tentativa de compreender o que se passava, notou as asas que acabou de ganhar. Olhou para o próprio abdome e percebeu um grande rasgo diagonal, por baixo do qual surgiu uma camada de couro vermelho, incrivelmente brilhante. Aos poucos, a vermelhidão foi tomando conta da superfície de seu corpo. O comprimento de seus membros se alongou drasticamente, junto de uma dor lancinante. Sua coluna sofreu grandes torções involuntárias, cada uma acompanhada do aumento repentino de suas vértebras.

A pele conforme conhecia foi completamente expulsa do corpo. Apertou os fartos seios que se formaram. Percebeu um espinho rígido como metal no lugar de cada mamilo. Nas grandes mãos que agora tinha, um dedo indicador à mais. Tocou a cabeça e confirmou a presença de três enormes chifres. Ao fim da espinha, formou-se uma longa cauda, com um osso falciforme exposto na ponta.

"A transformação está concluída, minha rainha! Receba suas memórias".

- Sai da porra da minha cabeça, caralho...

Um ponto branco surgiu no céu. A mancha aumentou rapidamente, cobrindo as nuvens de brasa. Aos poucos o cenário foi se modificando. Arfou as asas com energia, instintivamente, aumentando a velocidade da subida. Olhou para cima e prosseguiu o movimento. A repentina brancura tomou todo o céu, além de tudo mais ao redor, desfazendo qualquer orientação espacial. A dor e o desespero deram lugar a uma intensa sensação de liberdade. Sentiu como se pudesse fazer qualquer coisa. Sentiu o mundo aos seus pés.

Em meio a solidão da brancura total, sentiu o êxtase explodindo em sua mente, mas um novo elemento surgiu diante de seus olhos, causando total estranheza e quebrando a sensação prazerosa.

- Uma lâmpada? Como assim? - questionou, com a voz baixa e rouca.

- Que foi? Amor?

Olhou para o lado e viu um rosto bem conhecido. Tateou ao redor e percebeu que se encontrava numa cama.

- Puta que pariu! - berrou, eufórica.

- Que isso, amor? Tá sentindo alguma coisa.

Seu namorado a abraçou e suas peles se colaram.

- Fica tranquila, amor. Foi só um pesadelo...

Ela se livrou do abraço, agitou os pés vigorosamente e pegou impulso para fora do colchão. Se lançou numa caminhada ansiosa até o banheiro. Olhou seu reflexo no espelho e constatou que se tratava da mesma aparência de sempre. Ofegante, ligou a torneira e pôs-se a beber água. Não se lembrou de já ter sentido uma sede tão intensa. Foi pro chuveiro, apoiou as mãos nos azulejos da parede e deixou a água fria escorrer pelo corpo.

- Amor... Fala comigo... Você tá me assustando!

Sem obter resposta, o namorado sentou-se na beirada da cama e observou a poça de suor que se encontrava no local onde a moça dormiu. Ficou atento a qualquer coisa que sua companheira manifestasse precisar. Alguns minutos se passaram até que percebeu o chuveiro desligar.

- Amor! Já consegue falar comigo agora?

Ela surgiu na porta do quarto. Ainda calada, deu um breve sorriso. Olhou docemente nos olhos do sujeito e finalmente se manifestou, num tom que em nada combinava com o dele.

- Não dirija a palavra a mim, seu espécime de merda!

A protegida e o demônioWhere stories live. Discover now