Capítulo 1 - A encomenda

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O forasteiro já havia caminhado alguns quilômetros quando cruzou o Muro dos Arcos, famosa entrada de Einsengurst. O muro era uma construção composta de tijolos à vista, cobertos por limo verde ao longo de toda sua estrutura quebradiça, cujas rachaduras, de tão salientes, assemelhava-se a pequenos vasos sanguíneos. No topo da construção, bem ao centro do arco, uma placa suja e enferrujada pendia solitária. Nela se podia ler: "Bem-vindo à Einsengurst: aqui não existe amor!"

O homem sentou-se em uma pequena mureta semidestruída, a poucos metros da construção. O suor lhe corria as faces, com o sol a pino a arder na terra rachada, fervendo suas ondas no horizonte e derretendo a paisagem longínqua em turbulentas miragens. O forasteiro acendeu um cigarro e examinou o começo da cidade. Poucos homens apressados e algumas mulheres recatadas circulavam pelas ruas durante a tarde. As vestes largas do forasteiro exibiam um tom acinzentado, deixando revelar que, em algum momento, teriam sido brancas. Nos pés, uma bota comprida de couro, folgada e já demasiado desbotada. Usava um chapéu longo e irregular, de abas gastas, sob o qual se podia ver dois grandes olhos vermelhos e irritados. Possuía um nariz afilado, a barba longa e desgrenhada com alguns poucos fios grisalhos, ajudando a disfarçar o rosto sujo de carvão ou fuligem. As sobrancelhas, grandes, competiam com as pálpebras inchadas, dando ao homem um ar ao mesmo tempo triste e sério. Levava consigo um saco, uma faca, um baralho e um cantil presos à cintura. Ao avançar um pouco mais pela entrada da cidade, pode contemplar as primeiras impressões de Einsengurst: a distribuição urbana bem diversificada, os contrastes regionais marcantes. Logo ao pé das montanhas, havia um conjunto de pequenas casas de madeira, todas bem coloridas e de aspecto provincial. Mais ao norte, encontrava-se uma região mais desértica, que passava por longas estepes salpicadas de saguaros espinhentos e imediatamente circundada por uma cadeia rochosa, por entre a qual serpenteava um grande rio, o Chamavel. Se um turista seguisse para o oeste, avançando pela encosta, encontraria outro rio, chamado Efrain, situado um pouco mais ao sul. Desviando, mais à direita, onde os braços dos rios se encontravam, as águas do Chamavel se tornavam mais revoltas e sua forte correnteza prosseguia até desembocar em imponentes e exuberantes cachoeiras, mais ao Sul. Apesar da estiagem dos últimos dias, a vastidão das águas do Chamavel se configurava em um verdadeiro oásis, contrastante com o redor da paisagem árida. O rio era também chamado de "a benção de Einsengurst".

O homem continuou a andar por mais alguns minutos. Ao percorrer a entrada da cidade não deixava de espiar disfarçadamente os bolsos dos transeuntes. Fitava a todos com atenção e ainda não parecia ter encontrado nada de valor. Havia percebido também que não atravessara por nenhum guarda desde que ingressara na cidade. As pessoas, no entanto, circulavam desconfiadas, andavam a passos rápidos, sem dar dar muita atenção ou mesmo se aproximar do forasteiro, que não identificara ainda nenhum descuido nesse meio tempo. Após passar por um conjunto de pequenas casas aglomeradas, deparou-se com uma paisagem que provocou em seu espírito genuíno prazer: havia encontrado o tal bar. "Dizem que Einsengurst não é simpática com estranhos", disse para si mesmo, como se alguém já lhe houvesse dito aquilo. "Vamos ver se isso é verdade". Desamassou um papel que levava no bolso e examinou-o por um tempo;

Podia-se ler:

— GREEN SALOON, mesa à direita. B. p. CLI... asq.


Guardou o papel. Limpou os pés em um tapete que parecia mais sujo do que suas próprias botas, e entrou.

O bar tinha duas portinholas que dificilmente deixavam um visitante chegar despercebido. Ao ingressar no local, percebeu que todos os olhos se voltaram para ele, inclusive, aqueles que fingiam indiferença, pois vigiavam de canto de olho. Um desses olhos, em particular, deu mais atenção ao forasteiro, era o olhar de "Cliffe, O Asqueroso". Cliffe era o bandido mais famoso de Einsengurst, respeitado por seus consortes, amigo de alguns polícias e pesadelo de alguns comerciantes, joalheiros, ourives, banqueiros e qualquer alma viva que possuísse algum patrimônio. Era um sujeito grande, alto, olhos injetados, nariz pequeno e redondo, e boca miúda e perversa — boca essa capaz de tornar até mesmo o sorriso mais despretensioso em sarcasmo e intimidação. Sempre carregava consigo algum tipo de arma, mas naquele dia estava desarmado. O forasteiro avançou até a mesa e pediu uma bebida. Cliffe e sua trupe comemoravam alguma façanha recente, o que fizera com que Cliffe oferecesse a todos os clientes uma rodada de cerveja por sua conta. O estranho não deixou de notar o clima festivo e o moral e ânimos elevados dos clientes, sobretudo os parceiros de Cliffe, que cantarolavam uma velha canção de saqueadores, entoada a plenos pulmões e com os canecos de cerveja ao ar transbordando espuma.—  Mog, sirva um copo de cerveja para o estrangeiro também. — gritou Cliffe. — Ele tem cara de que não aguenta um uísque forte, então encha bem essa caneca de chope. — E então Cliffe soltou uma gargalhada.

O forasteiro ergueu a caneca em sinal de agradecimento pela oferta de Cliffe, de modo comedido. Sabia que se tratava de uma oferta misturada com provocação. Mas nada que pudesse deixar o forasteiro aborrecido, muito pelo contrário, o clima alegre, de comemoração, envolvia até o nosso misterioso personagem.

O mais curioso é que os olhos do forasteiro não deixavam de encarar uma pequena bolsa que Cliffe carregava. Estava sobre a mesa, era bem parecida com uma que ele também carregava. Ao observar tal semelhança, deu um sorriso confiante. Era a oportunidade. Estavam lá.

Cliffe veio em sua direção.

— Sabe, camacho... certa vez, vi se instalarem por aqui alguns homens da Terra do Fogo e a experiência não foi muito boa. Você me lembra muito eles - perguntou, em tom tranquilo, embora sua voz contivesse um quê de autoridade. — Nunca o vi por aqui, forasteiro. A que devemos sua visita, camacho?

— Cheguei a cidade há pouco e estou em busca de uma hospedaria, mas antes resolvi molhar um pouco a garganta por aqui, sabe como é, não é mesmo?

— O que sei é que não gostamos de estranhos em nossa cidade. Sabia disso? Não gostamos de concorrentes para nossos empregos. Já há camachos demais nessa cidade. Vocês são uma escória.

— Apenas busco alguma ocupação e algum dinheiro, nobre senhor. A simpatia dos "Einsengartianos"? É assim que se fala? — disse, com visível desdém —... A simpatia eu dispenso...

Nesse momento, o estranho despertou a ira em Cliffe, que contraiu o maxilar e cerrou um dos punhos.

— Está zombando da minha cara, camacho?

— Calma, cara - disse o homem, de modo indiferente. — Desse jeito vai derrubar meu copo de cerveja...

Cliffe bateu com a mão espalmada sobre a mesa, quebrando os copos que pularam com a batida, e em seguida agarrou o forasteiro pela gola da camisa.

— É um homem religioso, camacho? Porque acho bom ir tratando de rezar. — E então Cliffe lançou um cruzado de direita no rosto do desconhecido, fazendo com que ele tombasse no chão.

Ao tentar se levantar, o homem foi chutado no abdômen por Cliffe e lançado contra uma das mesas do bar. Cliffe estava vermelho, e partiu mais uma vez em direção ao desconhecido, que conseguiu se esquivar de um soco mas foi atingido em seguida por outro cruzado. Cliffe estava em uma mistura de raiva e prazer. Continuava a partir para cima do homem, que, à medida que podia, desviava de alguns golpes embora acabasse sendo atingido por outros. Até que em um determinado momento Cliffe agarrou-lhe pela camisa e o arremessou até a mesa onde estavam seus amigos, que aproveitaram para darem, eles também, alguns pontapés no estranho.

O dono do bar tentava advertir aos homens que não quebrassem os móveis do bar. Com medo, quase todas as mulheres corriam para fora do local, exceto por uma dama, cuja beleza impressionava, de vestido carmim e laço preso no cabelo, que observava a cena com certa atenção. Momentos depois, o forasteiro foi arremessado bruscamente pelas portas do bar.

- Não quero ver essa sua cara suja por aqui nunca mais: ouviu, camacho? — Disse Cliffe acompanhado de seu bando, exibindo um sorriso triunfante ao ver o desconhecido tentando se levantar e indo embora, cambaleando.

A dama, que via a pancadaria, bastante interessada, também havia saído do bar para observar o desconhecido.

O forasteiro mal conseguia parar em pé, havia sido atingido com certa gravidade em alguns pontos do corpo. Um tanto debilitado, com a mão na barriga, aproximou-se de um cavalo e, embora mal ficasse em pé, conseguiu montá-lo e disparar a galope, antes que o proprietário do cavalo conseguisse sair de uma loja de antiquário para reclamar o roubo do seu animal.

Já fora da vista dos algozes e sentindo-se mais seguro, o forasteiro desceu do cavalo e embrenhou-se por uma senda perto do comércio local. Achando um lugar ermo e quieto, pode se encostar na parede e se sentar.

Ao se acomodar, percebendo que já estava seguro, tirou de debaixo da camisa uma bolsa preta. Era a bolsa de Cliffe, O Asqueroso. As preciosidades estavam lá: seis das sete gemas douradas, muito reluzentes, conhecidas como os Cristais Sagrados de Viracocha, um deus inca denominado mestre do mundo.

O homem deu um leve sorriso, guardou a bolsa e, em seguida, desmaiou.


O Renegado de EinsengurstWhere stories live. Discover now