Milo

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       Caminho até a cama em passos lentos, sentindo que meu corpo pode ceder. Enxugo meus cabelos com a toalha e então a jogo na cadeira próxima a escrivaninha e sorrio fraco ao pensar em como Bárbara me repreenderá por isso.
Me deito sentindo minha cabeça latejar e meu corpo inteiro doer, como alguns minutos atrás quando a água gelada entrou em contato com meu corpo queimando em febre.
Tudo dói.
Me sinto fraco.
Sinto que a qualquer momento meus ossos vão se despedaçar em um toque ou que eventualmente não vou conseguir segurar o peso do meu próprio corpo, que agora parece consideravelmente mais pesado.

"Você precisa tomar" Miguel dita enquanto controla meu braço até a gaveta da escrivaninha. Debaixo de alguns papéis encontro o pequeno frasco de tinta e ao lado dele uma seringa.
A consequência do outro lado foi desenvolver o mesmo "vício"... A mesma necessidade que meu pai enfrentou desde o maldito dia na mansão. O dia que condenou ele, Miguel e eu a sermos reféns da tinta.

- Eu não quero - Minha voz falha.

Não consigo não pensar que tudo começou e acabou com essa tinta. A tinta que perseguiu meu pai e derreteu seu rosto até que ele não fosse nada além de um buraco; A tinta que queimou a pele da Bárbara; A tinta que enlouqueceu o Faroleiro; A tinta da criatura.

"Você vai morrer se não tomar. Nós vamos." O tom dele é quase suplicante.

- Miguel, eu não quero acabar como o Celestino. Eu não quero que um dia não sejamos mais nós e acabemos matando um deles. Eu não quero matar a Bárbara, a Amelie... Eu não posso matar o Olivier, Miguel. - A dor agora se expande ao meu peito que dói com o pensamento de que algum dia eu possa machucar alguém que amo.

"Você não pode morrer, Milo." E com essas palavras ele toma o controle.

Nossas mãos tremem enquanto Miguel tenta achar a veia. O líquido entra e em questão de segundos posso sentir algo tomar força em mim, sendo visualmente expressado pelo polvo latejando.

- Milo? - Ouço Olivier do outro lado da porta e imediatamente jogo o frasco e a seringa na gaveta. Meu coração acelera, o que pode ser consequência da tinta ou do medo de que ele descubra isso. Ninguém além do meu irmão sabe sobre minha sina e Miguel só tem consciência desse fato porque dividimos o mesmo corpo e é consideravelmente difícil esconder algo dele nessas circunstâncias.

- Oi - Corro até a porta. Olivier veste um moletom preto novo que comprou alguns dias depois de sairmos da ilha com constantes reclamações sobre como wandebas fez ele perder seu moletom preferido.

- Você 'tá bem? Parece doente - Ele me analisa com uma expressão aparentemente preocupada e eu sorrio fraco ao pensar em como ele fica engraçado assim

- Tô ótimo. - Não é uma mentira, apenas uma meia verdade. Me sinto menos fraco, mas não menos doente. Condenado a necessidade daquilo que nos colocou nessa maldita situação.

"A Amelie está mesmo te influenciando. Você dizia menos palavrões antes dela... Ou foi influência do Olivier?" Miguel ri descaradamente e preciso lutar contra um revirar de olhos.

- O que tem no seu braço? - Encaro a manga levantada e abaixo imediatamente me afastando a contragosto do toque dele.

- Algum bicho deve ter me picado - Forço um sorriso que parece não convencê-lo. Provavelmente a convivência constante fez com que Olivier fosse menos suscetível às minhas mentiras.

"Você é um péssimo mentiroso" Meu irmão mais uma vez declara suas acusações claramente falsas. Eu minto bem.

- Só queria avisar que a pizza chegou e aparentemente o sexto sentido da Amelie avisou pra ela que íamos pedir comida - Ele finge estar bravo, mas a verdade é que ele, assim como todos nós, ama quando estamos juntos e por um momento, um único momento, parece que estamos vivendo e não apenas sobrevivendo.

- Parece terrível - seguro uma pequena risada enquanto tento parecer igualmente mau humorado.

Caminhamos até a sala onde nossos amigos pareciam leões se preparando para uma caçada mesmo que tivéssemos comida o suficiente para todos nós. Tudo se tornava uma competição amigável, exceto jogos de tabuleiro quando os irmãos Florence eram irritantemente competitivos e Amelie era pessoalmente trapaceira.

- Otávio, eu não acredito que você vai colocar ketchup na pizza. Não sei se nosso relacionamento vai sobreviver a essa atrocidade - Amelie acusa encarando o homem à sua frente com sincera indignação.

- Pois eu amo Ketchup na pizza. - Wandebas toma o recipiente da mão de Otávio e coloca uma quantidade anormal em sua fatia recebendo um olhar de nojo de Amelie.

- Você é pobre, é claro que gosta desse horror

- O que ser pobre tem a ver com isso? - Bárbara questiona de boca cheia

- É falta de educação falar de boca cheia - Wandebas acusa, também de boca cheia.

- Será que vamos conseguir ter um momento onde a Amelie não ofenda minorias e o resto de vocês não criem discussões - Otávio fala alto enquanto come seu pedaço com ketchup

- Quem convidou vocês mesmo? - Olivier sorri caminhando até a caixa de pizza e pegando uma fatia com um guardanapo

- Não precisamos de convite - A irmã declara mantendo um olhar presunçoso o que faz com que Oli revire os olhos.

- Você vai comer com guardanapo? - Miguel questiona. No começo foi um pouco difícil para todos identificarem quem estava falando, mas de alguma forma, Olivier teve uma certa facilidade em saber quando era eu.

- Óbvio.

- Mas é besta - Wandebas acusou

Passar uma noite entre aqueles que acabaram eventualmente se tornando minha família foi o suficiente para que eu escapasse por algum tempo dos medos que ainda me assombram, mas deitar na cama depois disso e ficar "sozinho" com meus pensamentos fez com que tudo voltasse com mais força. A ideia de machucá-los quando a tinta enfim tomar o controle me condenou a mais uma noite em claro.
Será que o Celestino também era assombrado por isso? Será que meu pai teve esses mesmos pensamentos?

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N/A: O ponto de vista do Milo foi consideravelmente mais difícil.
Em breve as narrações de eventos entre eles serão mais longas, mas por enquanto é mais uma introdução. O Milo vai usar palavras como "engraçado" em vez de coisas mais explícitas para se referir ao Oli por um tempo. Ele não sabe o que sente e nem como se referir a isso, então vai ficar subentendido.
Eles tendo momentos família me lembra muito OSNF :(
Eu to doente, então foi fácil descrever como o Milo tava se sentindo.

E se... - O Segredo na ilha RPGWhere stories live. Discover now