Capítulo 9 - Insistência (parte 1)

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— Feliz aniversário... está linda.

Não tenho como virar e ir embora. Hoje há mais ouvidos atentos por perto, mesmo com a orquestra e demais conversas se misturando. E olhos também. Não colocarei abaixo o esforço exaustivo das últimas horas.

Os dentes trincam por trás do sorriso marmorizado no rosto. Aceno com a cabeça, num agradecimento formal, o tratando como se fosse qualquer outro convidado — ainda que minha vontade seja mandá-lo pegar suas felicitações e en...

— Então... — Gustav prossegue, com ponta de irritação. — Quer dizer que está noiva. E justamente dele.

Ele baixa o olhar acusatório para meu colo, como esperando encontrar o anel de aço. Lembro de trechos da discussão de ontem e é difícil não achar graça das ironias.

— Como é a vida, não é?

Gustav semicerra os olhos, erguendo um pouco o queixo para me encarar, a boca se projetando num biquinho patético de contrariedade para meu sorriso sonso.

— Por quê? — Ergo as sobrancelhas para o tom de exigência. — Por que aceitou noivar com ele tão... Sempre disse que eram só amigos e não se falavam há anos... mas ontem... mesmo depois de eu ter declarado meu amor por você diante da corte inteira, foi e... por que está fazendo isso comigo?

Sou incapaz de conter um bufo desdenhoso. Por acaso estou num folhetim?

— Minha vida não gira ao seu redor, Gustav. Fui bastante clara ao dizer que não receberia nenhuma nova chance. Se ainda ficou esperando algo, é mais estúpido do que imaginei — replico, encolhendo um ombro, enquanto varro o salão com o olhar, buscando algum relance de Hector. Ele já devia ter voltado...

— Mas ainda não disse por que esse noivado tão repentino — Gustav insiste, se colocando diante de mim para monopolizar minha atenção. — Nem você parecia esperá-lo de volta... e ainda assim acreditou em tudo o que ele disse a ponto de noivar? Aceitar tantos abraços em público? Isso que não entendo... Por que alguém que sumiu de sua vida por anos é digno de confiança e eu não?

— Não lhe devo explicações. Agora-

Como não? Sempre disse que minha cisma era ridícula, mas é só ele aparecer... — Ele dá um sorriso seco, o que no rosto mais empalidecido em contraste com a combinação de terno preto, lhe dá um aspecto doentio. — Por que ele logo propôs casamento? Já parou para pensar nisso? E se ele está usando a antiga amizade de vocês para subir de posição? Pelo que ouvi, ele sempre se escondia atrás de você e do príncipe.

Mais cabos de tensão se rompem em estalos agourentos, deixando minha armadura dependurada por poucos. Numa tentativa instintiva de mantê-la no lugar, aperto a mão esquerda diante do diafragma.

— Devo lembrá-lo que, em relação a posição social, ele ainda está acima de você? — As palavras disparam em farpas ásperas o suficiente para duas cabeças se virarem para nós. Aperto mais a mão, para lembrar de manter o tom e expressão controlados. Inspirando um fôlego raso, emendo através do sorriso desdenhoso: — Quanto a tentar subir de posição... Quem é você para falar?

Amo você! — rebate, quase sibilando, os olhos verde-oliva chispando a indignação controlada. — Como pode apagar todo nosso relacionamento por conta de um erro que nem foi meu, mas defender com tanta lealdade seu amigo que sumiu por anos? Como pode aceitar noivar dele sem nem pensar no que pode haver por trás desse pedido repentino? Não sou capaz de engolir que-

— Pouco me importa se engole ou não. Engasgue-se, se quiser — retruco entre o sorriso esticado, com floreado meneio de cabeça. Um latejar agudo sobe por meu braço a partir do ferimento que aperto. — Agora tenho outros convidados a cumprimentar e meu noivo deve estar a minha procura.

Tratado de Vidro - HIATUSWhere stories live. Discover now