Capítulo 41 - Desconfiança

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Nos custa mais três dias intimados a beber os chás asquerosos que Rosa nos traz, além de um benzimento reforçado até recebermos o veredicto de que estamos aptos para voltar aos estresses diários "com moderação" — e tive que me conter para não bufar na cara do médico ao ouvir isto. Se ele souber o que nos espera, talvez reconsidere o diagnóstico... mas não digo nada, pois cada hora a mais na cama, é uma pilha a mais de documentos se acumulando.

Mas quando voltamos, a quantidade de documentos que nos recebe não é tão assustadora quanto supunha e isso só pode significar que meus pais seguraram boa parte desses documentos para não sermos soterrados tão de imediato. Queria ir e pegá-los de volta para não sobrecarregar a eles, mas sei que não me entregarão — gostaria de me sentir grata com essa gentileza, mas só o que sinto é um aperto de culpa na garganta, pois eu quem deveria estar tirando essa carga sobre eles com a proximidade da sucessão...

Por uma semana e meia, Hector não frequenta seus exercícios para nos reorganizarmos e comparecer às reuniões de planejamentos, um e outro julgamento civil e ao Conselho Nobre. Este último acontece numa sala com espelho falso conectado a uma saleta secreta que se parece um camarote — em tese, isso serve para que os nobres se mantenham na linha por não saberem quando o Regente está acompanhando a reunião. Inclusive, existem duas chaves num painel da saleta: uma para fazer o espelho subir e tornar a sua presença conhecida, caso queira; e outra, que permite apenas falar lá dentro sem se mostrar.

Eu e Hector ficamos bem longe dessas chaves quando passamos quase um dia inteiro ouvindo uma reunião que consistia mais em troca de picuinhas pessoais do que tesouraria e manejo de impostos... não que tenhamos nos incomodado tanto em ser edificados com assuntos totalmente irrelevantes enquanto petiscávamos os amendoins que levei clandestinamente numa bolsinha amarrada em minha perna sob a saia — recorrendo a isso porque mamãe acha descortês levar esses lanchinhos, como se estivéssemos passeando no teatro; e essa pequena rebeldia me foi ainda mais valiosa pela cara embasbacada de Hector quando apoiei a perna na cadeira e puxei a saia até quase os joelhos para revelar o que trouxe — e mais uma vez desejei ser uma retratista, para carregar a expressão dele para sempre comigo como um amuleto mágico contra mau-humor.

Mas claro que não passamos a tarde inteira degustando amendoins e ouvindo "indecorosas contendas" sobre nobres maculando o matrimônio alheio, suspeitas de paternidades indevidas e rancores por apostas perdidas. Além de registrar os assuntos pertinentes, fiquei de olho nos membros puristas, tentando captar qualquer deslize que revelasse intenções de embargo ou mesmo de conhecimento sobre a iniciativa e estar de acordo — mas infelizmente nenhum fez esse tipo de comentário ali, onde sempre havia chance de serem ouvidos pela Família Real ou serem dedurados por um nobre mais leal...

Também ficamos atentos àqueles reconhecidamente mais progressistas e que, nos relatórios, constaram como apoiadores para tornar a Academia mista, tal como foram favoráveis — e até investiram — ao CESIT, intencionando entrarmos em contato com eles para discutirmos ideias de forma mais profunda e conseguirmos um apoio mais assertivo. Como sou uma vergonha para me aproximar dos nobres através de conversas banais, a outra solução que me ocorreu enquanto convalescia na cama foi abordar diretamente os membros do Conselho que estejam mais abertos ou neutros às mudanças — quem seria mais possível em apoiar ou podem ser convencidos a tal. Mas como se aproximar daqueles que não fazem parte do Conselho e das assembleias... aqueles que geralmente são os maiores responsáveis por espalhar os boatos que ditam a opinião pública... desses ainda não faço ideia.

Não consigo confiar na aparente pacificidade da corte quando voltamos a frequentar o salão, quase como se nada tivesse acontecido...

Tudo bem que a corte nunca fica por tanto tempo numa única fofoca, o que também não significa que não dizem nada — mas o tom dos boatos sobre a discussão com Annabella e minha ausência por dias com Hector é mais cochichado e desinteressado, como de fofocas muito antigas e requentadas, do que o esperado... Ainda assim, é impossível expulsar a sensação entranhada sob a pele... a sensação de que algo está me escapando... Aquela malícia perniciosa que vem não sei de onde, um miasma pairando sobre o palácio e me rondando em sonhos desfocados, como ser perseguida por um predador sem rosto.

Tratado de Vidro - HIATUSOnde histórias criam vida. Descubra agora