Capítulo 22: Maldições e Encantamentos

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"Na noite soturna, guiada por fraca luz, ela ascende com seu terrível bater de asas. Marcada pela dor, compadece, chora e fere. As sombras de suas asas se estendem e a cercam. Ela anseia a luz como uma raiz seca busca por água, mas o vazio lhe preenche, e seu coração é consumido."

Estrofe III - Terrível bater de asas

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Dia 15 de inverno. O retorno da estação fria. Os estoques de carne estavam cheios; os treinos suspensos. Susanna finalmente tinha um tempo para si e agradecia muito pelo que havia recebido de Klaus: a chave da biblioteca. Por um tempo, ela esteve na varanda, olhando das janelas arqueadas o vale congelado. Nesta época, ela utilizava o casaco negro de lã o tempo todo. O contato com o tecido a lembrou de Nayoung e de como sentia falta dela.

Pensando em saudades, lembrou-se da crueldade do último inverno, quando, na mesma ambientação, recebeu a trágica notícia da morte de seu pai. Ainda doía, o que por vezes gerava a necessidade de sempre manter a mente ocupada, pois o silêncio trazia pensamentos negativos.

As pessoas daquela casa geralmente se referiam a ela como doce, tímida e perigosa. Engraçado pensar que o último adjetivo era conferido por uma espiritualista civilizada, Leonor A Hipócrita. A verdade é que nenhum deles conheciam Susanna de verdade. Ela não era lá tão doce. Sua mente era uma confusão, agitada e voraz; frequentemente necessitando ler e escrever, pois era como ela exalava sua ansiedade, libertava seus medos e incompreensões. Também não era tímida. Não havia nada que ela não quisesse desbravar. Todos os assuntos lhe interessavam. Todos eles pertenciam a ela.

Naquele dia, ela voltou a biblioteca pela primeira vez em tanto tempo. Em meio as estantes, lembrou-se dos contos que leu nos livros trazidos por sua mãe na infância. Agora ela era uma "rainha" em sua torre de conhecimento; e se consumiria ali, mesmo que apodrecesse dias e noites a fio sem ver o sol. Ela não se importava. Amava o cheiro exalado das páginas. Quando sentiu necessidade, levou chá e biscoitos consigo e montou acampamento no sofá da área de leitura, onde deixou sua mente devorar as palavras.

Susanna também tinha uma habilidade extraordinária que se revelava ali, oculto de todos. Lia tal como respirava, e sua mente discernia tudo com rapidez. Leu sobre a história dos humanos, sobre espiritualistas, animais, doutrina da alma, do corpo e do espírito, poemas, contos... Ela leu até o fim do frio. Então veio a primavera e ela voltou a fazer todas as coisas que era obrigada.

Os ventos mudavam.

Nos dias seguintes, ela focou em cumprir o desafio de Klaus. Precisava de habilidades da alma boas o suficiente para fazê-la alguém apta a se defender contra espiritualistas. Tão forte quanto Eric. E o tempo corria. Na noite do dia 2 de primavera, ela levou seu caderno de memórias para a floresta, não muito longe da Mansão. Como antigamente, não havia grande policiamento sobre suas atividades noturnas, então ela deixou que seu coração falasse e que seus instintos a guiassem.

Susanna apoiou o livro ao chão, entre as folhas e troncos caídos, deixando-o aberto em suas anotações. Fechou os olhos, praticando a sensibilização, arte aprendida com Klaus e Eric no templo de Saldras. Concentrou-se na alma, abrindo os caminhos. A capacidade empática tomava conta de seu corpo. Pouco a pouco, a jovem sentiu que havia se tornado um receptáculo sensorial.

Notava os espíritos animais, seres grandes e pequenos, rastejantes ou não, vagando pela floresta. Por terem alma tão pura, traziam um certo alívio vindo de longe. Susanna sentia o respirar e expirar das folhas. O vento suave. A vida simplória sob a terra úmida e os cheiros de flores vindo do norte.

O ambiente empático se estendia. Era como se ela fosse uma daquelas árvores por um momento. Raiz firmada, sendo nutrida, parte de um todo conectado. Nenhum inseto caminhava ali sem que ela soubesse. Susanna queria habitar naquele momento. Sentia paz, completa.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Where stories live. Discover now