Conteúdo do Diário - Parte 1

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04/03/1924

   Caro amigo, tu serás meu companheiro e confidente durante esta empreitada. A qual empreitada me refiro? Logo lhe contarei, antes, permita-me confessar-lhe que meu primeiro intuito era usar-lhe como um simples livro de registros, mas dadas as circunstâncias percebi que necessitaria de um cúmplice, um amigo, já  que encontro-me sozinho. Ora, perdoe-me a grosseria com a qual dei início a este escrito, meu nome é Klayssius, muitos usam o termo Doutor antes de pronunciá-lo, todavia, creio que entre nós não será necessário.
   A respeito da tal empreitada anteriormente mencionada, busco a verdade sobre uma certa lenda.  Essa busca teve início há alguns meses quando decidi fazer uma viagem, veja, escolhi o país cujo tenho imenso fascínio por sua fauna e flora, a Austrália.
   Hospedei-me num pacato hotel localizado em um dos pequenos municípios de Queensland. Certa noite fui ao bar, sentei-me próximo ao balcão e pedi um whisky puro. Lá, alguns homens gabavam-se sobre seus feitos em alto e bom tom. Deparar-se com uma temível criatura e sobreviver é um bom exemplo. Após tanto falarem, um homem baixinho de olhos avantajados e pele anêmica, disse algo que despertou-me uma curiosidade.
" Vocês se gabam por terem encontrado essas criaturas, mas jamais encontrarão o Janguru".
Um outro homem, mais alto e mais forte que o anêmico, gargalhou alto e com sua rouca voz disse "você está certo, pois só é possível encontrar o que é real". Sem perceber eu entrei na conversa ao fazer um simples questionamento, o que cargas d'agua era um Janguru?
O homem anêmico fitou-me, seus pálidos lábios estampavam um sorriso satisfeito. Com sua caneca cheia de cerveja aos poucos aproximou-se. Um abrupto silêncio tomou o ambiente, todos aguardavam atentamente as palavras que aquele homem estava prestes a proferir.
"Quando os primeiros britânicos puseram os pés nesta terra,  - enfim iniciou - os povos Turrbal já a habitavam. Não demorou muito para que os nativos e colonizadores aprendessem a se comunicar. Jam, uma fruta doce e de textura macia chamou a atenção dos britânicos. Disseram que o sabor era de Céu. Havia poucas frutas, tentaram cultivá-las, no entanto, falharam miseravelmente. Ao questionarem como os Turrbal conseguiam cultivá-las, descobriram que o responsável pelo cultivo da magnifica fruta era um animal batizado pelos nativos como Janguru e uma já extinta espécie de lagarto, o SaViAl." Em todos os meus anos de profundo estudo e pesquisa, aquela foi a primeira vez em que ouvi falar em tal espécie de lagarto. Minha mente entendeu que aquilo nada mais era do que um furo na história, todavia, supus que tal espécie de lagarto, mesmo sem qualquer registro que comprovasse, era uma espécie local, pertencente somente à aquela região, então me permiti entrar na história. Prosseguindo a narração. "Os colonizadores caçaram os Jangurus, mas nada encontraram. Os Turrbal os alertaram de que não adiantava prosseguir com a busca, se os Jangurus não quisessem ser encontrados, todos os esforços seriam em vão.  Uma lenda criada com o intuito de não compartilharem o segredo por trás do cultivo da Jam? Ora, ninguém em perfeito juízo deixaria uma fruta com a Jam ser extinta. A respeito dos Jangurus, pouco foi relatado..." Recordo-me claramente do medonho arroto seguido de um bafo ardente, não seria exagero dizer que senti o álcool queimar os pêlos do meu nariz. Sem sobriedade aquele homem prosseguiu. "Os nativos disseram que fisicamente os Jangurus assemelhavam-se aos cangurus, apesar de serem um pouco maiores, além de bem mais inteligentes e dóceis. O jan do Janguru derivou da fruta".
Esperei que ele prosseguisse, mas o homenzinho nada falou. Algumas doses depois, o contador de histórias foi levado para casa carregado por outros.
   Após me deitar fui atormentado por um turbilhão de perguntas que roubaram-me o sono. A principal pergunta era por qual razão a história narrada por um bêbado intrigou-me tanto?
   No dia seguinte visitei a pequena biblioteca do município onde passei horas a ler. Acredito convictamente que ler é uma das Maravilhas deste mundo. Meu propósito era encontrar algo acerca do Janguru ou do SaViAl, qualquer escrito por menos que fosse, mas não encontrei. Felizmente essa pesquisa rendeu um fruto, pois de tanto mexer nos livros e quase revirar as estantes acabei encontrando um pedaço de pele enrolada e amarrada por um fio, para minha surpresa havia uma gravura na mesma. A gravura tratava-se de um animal, era a primeira vez que via aquela criatura, e por claramente se tratar de um lagarto deduzi que aquele era o tal SaViAl. Pelo excelente estado de conservação da pele claramente centenária o registro certamente foi feito por um Turrbal antes que o lagarto fosse extinto.
   Acredite quando lhe digo que observei a gravura por mais de quarenta minutos. Cada detalhe. E após tantos observa notei algo, e permita-me a ausência de modéstia, algo que somente um voraz observador seria capaz de notar. A pele media em torno de um metro e a gravura media setenta centímetros, mais do que uma gravura, aquele registro tratava-se de um retrato em tamanho real. Sutilmente enrolei a pele e a escondi na parte interna de meu sobretudo. Não me julgue, eu não roubei, apenas necessitava fazer uma cópia, então peguei emprestado, no dia seguinte a devolvi intacta.  
   O SaViAl era aparentemente comum, as características que o diferenciavam dos demais lagartos eram suas patas negras, cauda bifurcada e orelhas que se assemelham a pétalas.
   Encontrar este material me deixou ainda mais intrigado. Por que a gravura não foi revelada ao mundo? Claramente incomodado com esse questionamento voltei a biblioteca, no entanto, a gravura não estava onde a encontrei, nem em qualquer outro lugar daquela biblioteca. Nenhum dos funcionários sequer havia visto ou registrado o material. Retornei ao hotel com mais questionamentos. Certamente não tive um delírio, a cópia que desenhei era a prova. Então, onde foi parar a gravura em pele? Além disso, o Janguru e a Jam seriam reais? A gravura comprovava a existência do SaViAl, todavia, não validava a existência dos demais.
   Caro confidente eu estava mergulhando na história de um bêbado. 
   Sentando-me de frente para a janela com papel e caneta em mãos, anotei duas das perguntas que mais me perturbavam e então tentei respondê-las. 

O Diário de KlayssiusWhere stories live. Discover now