selva de pedra

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O mais brando som da fome dança no organismo de quem não come há dias, que brinca no vale do perigo às cinco da manhã, movendo os pés em um equilíbrio deifico, onde a vestimenta tão colorida, feita justamente para chamar atenção, passa tão despercebida.

Os lábios são delineados por um sorriso de um trabalho bem feito, a face tão erguida ao lençol cinzento que um dia fora chamado de céu, as mãos delicadas fazem o espeto de madeira rodopiar continuamente, os pratos de plástico dançam em uma melodia criada por sua mente tão criativa, mas que nunca fora levada tão a sério.

A primeira gota de chuva provinda da tão conhecida terra da garoa faz com que ele apresse sua performance, assim como o mais bruto lembrete de um sinal vermelho. O movimento mais eficaz o faz saltar do monociclo, recolhendo todo vestígio de dignidade que o resta ao correr de carro em carro com seu melhor sorriso, observando os vidros sendo fechados, as moedas cor de bronze que alguém busca na carteira, a buzina impaciente de quem nunca entendeu muito sobre a vida, mas está prestes a vê-la esvair da forma mais bruta.

É o caos que preenche a selva de pedra, manchando tudo ao redor com o rubro intenso, onde o veículo de duas rodas se choca violentamente com o pobre corpo mundano cheio de esperanças.

O som da batida vem como uma explosão, a casca vazia se vê arremessada para o outro lado, arrastando-se até o meio fio. Onde os pedestres param seus afazeres ao observar os corpos caídos.

As orbes banhadas pelo tom vívido de mel fixa-se sobre a promessa do fim, onde mesmo que caminhe ao lado oposto, sempre me encontra à espreita. As batidas do coração estão descompassadas e carece de oxigênio enquanto me observa abaixar ao seu lado.

Fito a discórdia mundana, indignada pela irresponsabilidade do outro que ignorara um sinal, que mesmo sabendo que dois minutos a mais parado em frente à uma faixa, aguardando sua vez, não iria ser o fim do mundo.

As vozes se unem em balbúrdia, tristeza. O som distante de uma ambulância surge entrelinhas.

O que vai acontecer agora? — indaga na forma de sussurros, toda sua atenção fixa na forma com que toco os cabelos enrolados gentilmente, a textura áspera das mãos faz seus poros se abrirem.

Ergo a mão para que ele me siga, o levantando como quem pega uma criança tão leve. Agora, que está em pé ao lado da figura esguia como lança vestida em roupas tão coloridas e alegres pode perceber o que lhe ronda como assombro.

Mesmo estando no para além, compreendendo que toda sua jornada finalmente chegara ao fim, não pode deixar de chocar-se ao encontrar o garoto de dezessete anos jazendo ao centro da rua, tão distante da motocicleta que o carregava há tão pouco tempo.

Consigo perceber o ímpeto terror que percorre os olhos, as sobrancelhas que franzem e os lábios comprimindo na mais tênue menção de um choro. Não há volta.

O labirinto místico onde os grafites gritam fora banhado pelo tom convidativo, pelo choro de mãe e pela saudade eterna.

Desde o início dos tempos estive encarregado pelo fardo de guiar almas vazias pelo vale do sono eterno, esse que os abraça com carinho e trás a sensação tenra que tudo ficará bem.

A sensação dolente cresce sobre a parte de trás de minha cabeça, captando fielmente cada sensação de Douglas enquanto sinto seus dedos se entrelaçando aos meus, as garras afiadas tentam não ultrapassar mais que o necessário da pele ao tempo que seus olhos se fecham para o cumprimento de uma vida, enfim.

Respiro fundo captando o ar do para além preenchendo os pulmões, ali onde o mundo é tão calmo e seguro, as cores vibrantes de um jardim de flores nos cercando, a voz de criança sorridente chamando por um pai, rodopiando com seu mais novo bambolê. Sinto cada uma das memórias passando por meu organismo, a vaidade que excita, a ganância que vibra, os bares de almas tão vazias, buscando desesperadamente algo bom para se agarrar.

NÃO EXISTE AMOR EM SPOnde histórias criam vida. Descubra agora