Buquês são flores mortas

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O tempo parece ter parado.

A chuva faz uma dança prazerosa nesse lado do mundo, tão cinza e cheio de sonhos adormecidos, onde encontro duas nuvens em cada escombro e cada esquina, que o gole de vida se esvai pela força do relógio natural.

Durante os decênios seguintes, estive a espreita a encarando viver, era reconfortante encontrar a linha curva sobre os lábios quando lia as notícias no jornal sobre si, que a canção sobre nós percorria a boca do mundo a fora.

Fui punido pelo Criador, me deixando preso na casca mundana por muito mais tempo que o necessário, tendo meus poderes arrancados à força por um erro que ninguém sabia explicar porque havia ocorrido, mas que se tornara pior pela intervenção de um pobre apaixonado.

Posso me recordar das vezes que a encontrei pelas ruas animadas, pelos bares de almas vazias, onde os anos dois mil davam as caras de forma saborosa.

Talvez, pudesse ter me revelado, mas entendia perfeitamente bem os empecilhos do amor inventado, que me assombra até os dias de hoje.

E agora, enquanto Valente fixa suas orbes sobre minha imagem, consigo observar o tamanho da alegria ao me encontrar.

O quarto está cheio, os parentes choram e rezam, mas é como se houvesse apenas nós.

— Sabia que você era real — murmura na dificuldade de uma voz que já não existe há tanto, tão rouca e falha.

Aproximo-me aos poucos, onde graças a urgência e a vaidade excitante que percorre minhas veias, me forço a aparecer menos aterrorizante.

— É mais bonito do que me recordo — os lábios tão secos delineiam um sorriso satisfeito, onde suas papilas gustativas o umedecem a todo instante.

Gosto da casca humana que esconde minha real forma. A pele queimada de sol, trazendo um tom levemente bronzeado, os fios escuros como uma madrugada de verão, sobrancelhas baixas e a barba mediana.

O formato dos olhos são amendoados e a íris castanha clara, como amêndoas, o corpo em si é robusto e comum. Não existe nada demais, contudo, é a visão que a agrada tanto.

Continuo a caminhar no silêncio cortante, não fui agraciado com o dom da voz, o que torna a cena tão agonizante.

A demência a faz acreditar que está sonhando novamente, onde fecha seus olhos e as lágrimas frescas escorrem pela face envelhecida, que graças a imaginação fértil e o dom de lembranças, ela sente-se jovem outra vez.

Engulo a seco ao sentar no colchão duro, onde o corpo carece de oxigênio e torna-se tão maleável, desprovido de ações e dizeres. Está na hora.

Mais uma vez, encontro o toque quente contra meus dedos, onde sou capaz de escutar o mais tênue gemido de dor quando minhas garras fincam-se sobre a pele e o mundo se expande como outrora.

Sinto um ímpeto arrepio ao tempo que nossos dedos se entrelaçam no mundo além, que Valente é tomada pela poeira branca, que dança ao seu redor como passarinhos de um conto de fadas comum, rodopiando e fazendo as vestes confortáveis se transformarem em um vestido azul ciano, as joias enfeitando os braços e pescoço, a face mais uma vez pincelada com lábios vermelhos e sombra cinza.

Os fios grisalhos bailam pelo ar até não restar nenhum vestígio do branco, ganhando a jovialidade de um preto vivido.

A vejo sorrir ao perceber que está sendo eternizada.

Quando nos afastamos, onde Magda rodopia numa dança criada por si mesma, apenas para glorificar toda a menção de felicidade que a preenche por inteiro, a vejo franzindo as sobrancelhas finas.

— Eu o vi todos esses anos — ela começa ao tempo que esbanja um breve sorriso convencido — Sabia que não precisava morrer para ver Deus, pois ele tinha me mostrado toda minha vida num passe de mágica, salvando-me daquela noite hedionda.

Enquanto fala sem obter respostas, seus olhos percorrem as telas que contam toda sua história, onde as unhas longas apontam para cada uma delas, imensamente alegre ao perceber que todo vislumbre descrito em suas canções tinham se tornado realidade.

— Eu senti você — acrescentou ao encontrar uma memória afetiva.

Ela fecha os olhos e, por estarmos conectados no Mundo Além, sou capaz de captar cada uma de suas sensações corporais e sentimentais.

Morde o lábio ao se recordar do toque afável, da excitação e do orgasmo, de todas as vezes que me encontrou deitado em sua cama, mesmo que isso seja apenas fruto de sua mente fértil e não compreendida.

— Você não vai me dizer? Que não estive louca quando entregou-me toda minha vida em um sonho acordado? — ela pergunta de olhos fechados, mas os abre tentando me encarar — Sempre achei que fosse meu anjo da guarda, por estar ali à espreita, mas não sei se tenho razão. Quem és você, que me trouxe tanto júbilo no formato de sonhos? Que mesmo que pudesse ter se aproximado, nunca o fazia?

Agora, onde seus momentos de recordação de toda uma vida chegam quase ao seu fim, o desespero cobra seu preço. Abro os lábios, mesmo sabendo que não haverá voz, mas não importa.

Caminho até ela sem muitas opções, coberto pela dúvida, onde meu egoísmo de tê-la para mim me trouxe tantos problemas.

Acontece que Magda Valente deveria ter falecido no dia de sua estreia para o mundo, assaltada e esfaqueada quinze vezes pelo puro ódio de alguém aflito demais, contudo, eu intervi .

Todas as vezes que encontrou-me, eu intervi.

Não podia impedir sua morte, pois desde o dia de seu nascimento, ela já estava demarcada. Valente soube naquele verão de oitenta e oito que morreria em um assalto, que sua beleza seria completamente arrancada pela ganância que grita, pelos escombros de um teatro que viria desabar meses depois.

A prolonguei burlando todas as regras do Criador, que amaldiçoou-me com um amor impossível. Onde estava fadado a ter as memórias de Valente junto a mim num assombro jamais visto e, mesmo que eu me esforçasse para esquecer, sua ira era maior.

Todas as almas que recolhi, todos os momentos antes do sono eterno, onde as almas eram agraciadas com seus momentos bons, ele me fazia recordar da morte de uma amada.

Magda Valente era um buquê, mas buquês são flores mortas num arranjo lindo feito para você. E agora, setenta e sete anos depois de ter vivido a ilusão lancinante do que jamais ocorreu, ela estava pronta para partir.

Sorri-me pela última vez, tenta encontrar uma lógica viável para tudo que a rondou, mas ninguém além do Criador poderia o dizer.

Quando ela torna a me tocar, na promessa silenciosa de que tudo que vivera foi apenas uma parte, que o que realmente contava era a fração de segundos inventada ao meu lado, ela se foi.

Assim como um sopro de vento, onde a calmaria de uma morte natural dominou meu corpo numa sensação dolente, cada partícula se tornando molenga e esvaindo-se, enfim.

E é nesse momento que percebo que de fato, não existe amor em SP. É apenas uma ilusão criada para o tormento de uma criatura solitária, amaldiçoada por uma falha, mas também agraciada pela sensação breve de um sentimento mundano e, agora, enquanto encaro o que um dia foi Magda Valente, em sua forma cósmica e brilhante, sou libertado.

Ou pelo menos pensei que tinha sido libertado. Essa breve história sobre o amor inventado por um mundano e uma criatura eterna, terminou da forma previsível que deveria, com o beijo da morte.

Mas, apesar de todas as coisas que narrei, não posso ter a certeza exata se de fato fui liberto de uma maldição que me fez tão bem ao tempo que causou tantos problemas, entretanto, posso dizer-lhe com exatidão que cada momento que mantive dentre oitenta e sete e os dias atuais, poderia facilmente fazê-lo de novo.

Mesmo que isso cause minha insanidade. Se é que alguém como eu possa tê-la.

NÃO EXISTE AMOR EM SPحيث تعيش القصص. اكتشف الآن