II

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O navio do capitão Gezegend desceu durante dias os vertiginosos rios da floresta amazônica. Nevoeiros encobriam a manhã, a chuva caía no fim da tarde e mosquitos do tamanho de um polegar atormentavam a tripulação durante a noite. A pior parte era o calor. Por ser uma floresta tropical, a humidade do ar era sempre alta, impedindo que os corpos transpirassem adequadamente, dando a sensação de caminharem numa eterna sauna. Peixes espinhosos de aparência pré-histórica regavam as refeições e o canto de milhares de espécies de aves ecoavam em seus ouvidos. Bradão se adaptou rapidamente a vida de marujo, pois não era a primeira vez que havia pisado em um convés. Era excelente em puxar espias, içar o ferro ou lançar redes de pesca, mas ficava descontente quando era sua vez de limpar as latrinas e, sempre que podia, trocava o serviço com algum novato. Num desses entardeceres, enquanto Bradão recolhia o pano da vela, Julinho, o grumete mais moderno da tripulação decidiu puxar conversa:

– Mas, então... – ele saboreava um caju de sobremesa do almoço na ponta de uma faca. – os "charutos" são um povo daqui da região de Pernambuco ou você veio andando pra cá?

Bradão arremessou a pilha de lona como não fosse nada, encarou o jovem abusado com uma fúria tão grande estampada na pupila que o fez engolir um pedaço inteiro do fruto sem que mastigasse.

– A pronúncia é "charrua". E, não, não são nativos do norte. Os charrua são um povo do sul, muito além da capitania de Santana e Paranaguá.

– E o que você está fazendo aqui?

O rosto de Bradão ficou tomado de sombras:

– Eu fui expulso da minha tribo.

Julinho engoliu seco mais uma vez:

– Por que te expulsaram? Você fez merda?

– Você é curioso demais, rapaz – Bradão acabou seus afazeres, mas Julinho permanecia ao seu lado com os olhos arregalados de curiosidade aguardando a resposta. Vendo que seu companheiro lhe atormentaria até que respondesse sua pergunta, o charrua estalou a língua e disse:

– Fui expulso por causa de uma maldição: a maldição da Estrela Ariana. Na noite do meu ritual de passagem para a vida adulta, a Estrela Ariana, que vocês chamam de planeta Marte, brilhou quando não deveria. Os anciões discutiram durante horas, refizeram os cálculos astronômicos, mas, chegavam sempre as mesmas conclusões: eu havia sido amaldiçoado pelos deuses da guerra, da matança e do sangue.

– E que maldição é essa?

Bradão observou os próprios braços, bíceps e punhos com uma admiração melancólica.

– Meu corpo não para de crescer, meus ossos nunca irão parar de esticar e meus músculos nunca irão para de inchar.

Julinho franziu o cenho e voltou os olhos com desconfiança:

– Peraí, você está amaldiçoado a ser muito forte?! Essa é a melhor maldição que eu já ouvi falar.

Bradão grunhiu com o desdém do grumete:

– Não seja tolo. Meus ossos esticam, mas não ficam mais rígidos que o seu, meus músculos incham, mas meu coração e pulmão permanecem do mesmo tamanho. Logo, minhas pernas se partirão com meu peso ou meus órgãos serão esmagados pela pressão das fibras avolumadas. Está vendo isso? – Bradão apontou para as listras verticais traçadas em sua testa. – Cada ano que passa, eu marco em minha testa mais um ano de vida sob o julgo da Estrela Ariana. Segundo o ancião da tribo, no dia em que completar sete riscos, meu corpo irá sucumbir. – O charrua voltou a olhar a água do rio escorrendo pela quilha em melancolia. – Não viverei para criar uma família, nem morrerei em batalha contra um inimigo digno. Meu destino é morrer esmagado por minha própria força, que sempre me deu tanto orgulho.

Julinho coçou a cabeça, sem saber muito bem se havia entendido. Mas, de qualquer forma, ter apenas mais quatro anos de vida era algo muito horrível de fato.

– Sete anos, é? E o que você pretende fazer?

– Só há uma coisa a ser feita, meu caro Julinho – o charrua exibiu uma cordilheira de dentes em um sorriso assombroso sob seus olhos de brasa – Serão sete anos incríveis, dignos de histórias e canções e que nunca serão esquecidos pelo mundo!

O MORCEGO DO DIABONơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ