24 horas para esquecer

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I

Acordei em meio ao sangue. E não era pouco. Nas mãos e na roupa, mas também podia sentir o gosto suave e quase neutro tangenciando meus lábios, lembrando o adocicado de um detestável fígado mal passado... Tudo girava, eu estava confusa.

A faca ainda estava na mão esquerda. Ainda? Ora, por que será que eu tinha a sensação de que era "ainda? O que é que eu havia feito, que considerasse uma preocupação, a faca ainda estar na minha mão? Ou seria apenas uma natural associação entre todo aquele mar vermelho e a afiada lâmina da arma branca, agora rubra, de um vermelho vivo, escarlate, de vivas e prováveis artérias feridas de morte, mas também misturadas ao escuro de um vermelho venoso, demonstrando que o estrago havia de ter sido muito grande... O que é que eu havia feito?

Não conseguia lembrar-me de nada. Ali estava eu, numa cama de casal, ensanguentada e na mão o instrumento de trabalho de um açougueiro... E tudo girava... O lustre no teto desmembrava-se em dois, depois voltava a ser um... A luz fraca e tênue que vinha de uma porta entreaberta, tornava o quarto ainda mais lúgubre e girante... O que havia acontecido?

Aos poucos fui recobrando a lucidez, como quem sai de um sono pesado e demora a entender onde está, mas à medida que acordava, embora desperta, eu não sabia verdadeiramente onde me encontrava — e não era tão somente o torpor do sono que se desfaz, na direção da vigília, mas um genuíno desconhecimento posicional e geográfico: eu efetivamente não conhecia aquele lugar!

Larguei a faca, enjoada e levantei-me. A cortina blackout da ampla janela tornava tudo ainda mais tenebroso e escuro e como uma 'aleluia' que busca a luz, segui na direção do facho luminoso e abri a porta, desembocando num amplo banheiro estilo retrô. Busquei a pia e abri a enorme torneira dourada, cuja abundância de água fez-me molhar toda a camiseta, que logo ficou rosada. Tirei-a e joguei-a num canto.

Girei um pouco menos aquilo que mais parecia o volante de uma válvula de canalização industrial, diminuindo a vazão e banhei abundantemente meu rosto, mas aquele gosto desgraçado não saía de minha boca, parecia impregnado. Desesperei-me e frenética e agitadamente jogava água contra o rosto, fazendo bochechos e gargarejos, cuspindo e sentindo uma vontade enorme de vomitar, só de pensar que eu pudesse ter bebido sangue feito um vampiro. Olhei-me no espelho, nenhum arranhão ou ferimento. Afinal, maldição, o que teria acontecido?

Enxuguei-me numa toalha branca, que puxada com força, revelou um cabide de porcelana branca, fazendo-me lembrar do banheiro da casa de minha avó paterna, vô Neiva. Ah, vó Neiva, o que é que estava acontecendo? Por que é que eu sentia-me saindo de um sono criogênico, despertando-se sabe lá Deus onde?

A tolha parecia limpa, mas nela também impregnado outro cheiro, igualmente nojento, de roupa mal lavada, sem uso de amaciante. Era como se eu pudesse sentir o odor de todos que nela haviam esfregado seus corpos sujos e imundos. A ânsia veio forte e vomitei. A alva bacia sanitária logo revelou a verdade: meu vômito estava rosado — e em não havendo nenhum sinal de uma úlcera supurada, de fato, eu bebera sangue. Mas por quê? E de quem? Jesus, será que me tornara uma canibal e não lembrava? O que estaria sucedendo-se comigo? E o que teria acontecido na última noite de 2018?

Apenas de sutiã, metida numa calça de lycra preta, bem justa, voltei ao quarto. Eu devia estar num quarto de hotel barato — ou flat, pois logo notei que havia outro ambiente, uma sala e foi ali, quando adentrei, que tive novo espanto e com grande custo contive o grito, que ficou parado na garganta: um jovem homem, sem camisa, jazia morto, o abdome rasgado de cima a baixo, o sangue enxarcando o tapete felpudo.

— Meu Deus do céu, o que foi que eu fiz?

Pensei em ligar para a minha mãe, mas não consegui, estava sem créditos. Meus olhos então esquadrinharam, desgovernados, toda a área do quarto, em busca de um aparelho telefônico e não me espantei ao deparar-me com um modelo muito antigo, daqueles de disco, que só na casa de vó Neiva houvera um dia. Para piorar: vermelho! Estava sobre uma mesinha, também saída de meados do século XX. Teria o aparelho ligação direta com a Casa Branca? Mas era tão somente peça de decoração. Não tinha linha nem para a recepção.

CONTOS POLICIAIS (INUSITADOS)Where stories live. Discover now