Memórias Agridoces

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O sol invade o quarto e o vento frio entra sem nenhum pudor, tocando-lhe a ponta dos dedos descobertos e fazendo suas pernas se arrepiarem, se lembrava bem de ter fechado a janela na noite anterior, ou não? puxou os pés para o quentinho debaixo das cobertas e gemeu baixo em puro desgosto por ter de sair da cama. Longos minutos se passaram desde que Lauren emitiu algum som, o sono não voltou e ela ainda não havia fechado a janela e o quarto havia se tornado frio demais até mesmo para si que adorava a estação.

Afastou as cobertas e meio de mau humor fechou as janelas, a noite havia sido tranquila, ainda que tivesse rotineiramente levantado uma porção de vezes para checar como estaria Sarah no quarto no fim do corredor. Sentia falta de acordar com os braços em torno de si e o respirar lento se misturando ao seu.

Por muito tempo lhe disseram que não era sua responsabilidade, que não deveria ter tanto para carregar, como se Sarah fosse um fardo, como se algum dia tivessem desejado que algo parecido acontecesse, em todas as malditas vezes ela se negou a responder, recolheu-se e levantou, deixando que quer que fosse sozinho com suas palavras, não tentaria explicar seus motivos para permanecer. Ainda que por alguns dias pensara em realmente acatar a ideia, especialmente naqueles que eram difíceis demais, nos períodos em que as crises chegavam como uma torrente forte que rompera uma barreira, o médico havia lhe dito que coisas do tipo poderiam acontecer.

Lauren deixou o quarto, os pés metidos dentro de uma pantufa colorida enquanto se arrastava para o corredor. O cenho se franziu quando ouviu uma música baixa tocando e um barulho na cozinha, era como mergulhar em um emaranhado de lembranças que agora pareciam desbotadas.

— Bom dia!

Sarah tinha os cabelos úmidos, pareciam pingar sobre suas costas, molhando a camiseta escura e surrada com uma logo estranha de uma banda de rock nórdica e quase desconhecida. Sarah ela detestava aquela camiseta.

— Bom dia... O que... — Lauren encarou o cachorro deitado na entrada da cozinha, como se lhe perguntasse o que estava acontecendo, mas o animal parecia não se incomodar com a situação.

— Você gosta de panquecas de mirtilo, não é?

Lauren engoliu em seco, o cenho franzido em uma careta, enquanto observava Sarah andar de um lado ao outro, mexendo nas panelas como se os últimos dois anos não tivessem acontecido.

— Gosta? — insistiu, enquanto colocava as pequenas rodelas de massa quente e doce em um prato raso, mas grande o suficiente para comportar as panquecas o mel e o mirtilo.

— Sim. Obrigada. — Lauren detestava mirtilo e não comia glúten a mais de um ano. —- Você...

— Sim, eu li as anotações e assisti aos vídeos dos últimos dois meses. — Uma nuvem cinzenta passou pelo rosto de Sarah, mas logo se foi e o rosto se iluminou com um sorriso.

Lauren compreendeu que a tempestade havia passado, aquele era um dia bom.

O café foi servido e Lauren apanhou o jornal, a coluna de economia estava lá, trazendo informações sobre altas e baixas de investimentos, o mercado avançava como uma tubarão em um mar repleto de pequenos peixinhos. Tudo parecia caminhar para que aquela semana fosse uma boa semana para trabalhar e movimentar os investimentos de seus clientes, os bons frutos seriam colhidos em três ou duas semanas. Tudo dependia da habilidade de quem moveria as ações.

Por alguma razão o silêncio instalado entre as duas não é desconfortável, ainda seja ligeiramente pesado. Sarah percebe que um vinco ainda está formado na testa de Lauren, deve ser tão complicado para ela quanto para si, imagina ter se apresentar diariamente para sua esposa. Sem pensar muito em seus atos Sarah estende a canhota e segura o pulso oposto de Lauren com delicadeza, o assombro é nítido na face da mulher sentada a apenas alguns centímetros. Algo em seu olhar beira o medo e a confusão, sob os olhos bolsas escuras se formam e dizem que ela não tem dormido bem. O sentimento de culpa, pouco a pouco parece tomar raízes dentro de Sarah.

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