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A professora de português tinha sido clara: queria um conto literário dos alunos, e isso ia valer a nota duma prova. Era nisso que o Augusto pensava quando colou o rabo na arquibancada e jogou a mochila pro lado depois de catar nela o caderno e uma caneta do estojo. Uma verde brilhosa, de glitter, que ele amava pra fazer títulos e enunciados. Escreveu Suor no cabeçalho duma página em branco, e aquele ia ser o título da sua história ainda não escrita. Só então ergueu o rosto pra quadra: os caras do time da escola treinavam futebol. Aula de educação física rolando, tarde quente em Olinda.

Ele voltou o olho pro Suor escrito em caneta verde brilhosa e duvidou se era o título perfeito pra aquilo. É que parecia, sabe, tão pequeno... Mas ainda estava com o Suor do Jorge Amado armado na cabeça. O pianista Franz era seu espelho. Augusto se reconhecia nele tão de imediato que achou bom homenagear a obra dando ao seu conto o mesmo título dela.

Aqui, duas garotas da sua turma também subiram na arquibancada, passaram por ele conversando entre si. Augusto revirou os olhos. Ficava claro que ele não era mais o único a vir caçar inspiração na aula de educação física...

Então, focou nos caras correndo atrás da bola na quadra de concreto. Suados, as camisas empapadas coladas nos músculos. Aí olhou pro Suor pela terceira vez na folha em branco. Talvez o título fosse muito óbvio, ou talvez fosse perfeito.

Arrancou a tampa de uma bic com uma mordida e descreveu tudo o que viu: caras jogando bola na aula de educação física. Rasgou a folha minutos depois. Estava uma merda. Reescreveu o título, espiou as meninas lá distantes, fuxicando que nem duas galinhas, e decidiu que ia caçar o seu personagem antes de descrever qualquer coisa de novo.

Um cara chutou a bola, meteu ela no gol, todos gritaram. Augusto achou a palavra meter ótima pra um trocadilho, anotou ela no caderno. Todos gritaram ele decidiu trocar por todos gemeram. Achou que ia ficar mais sujo e mais poético. Aí, depois ficou olhando pro cara que fez o gol. Era o Gustavo Martens, do terceiro C.

O Gustavo era magrelo, mas definidinho, topete de gel, nariz arrebitado, olhos cor de mel. Também lutava jiu-jitsu e MMA, o que fazia dele apenas o segundo cara mais badalado do colégio. Só perdia pra um tal de Lucas Luan, mas esse estudava de manhã e Augusto só conhecia de fama. Ainda assim, o Gustavo era o crush de todo mundo. Inclusive do Augusto. Inclusive das meninas sentadas lá longe que agora riam e tagarelavam do gol fazendo barulho igual duas curicas.

Voltando à folha em branco, Augusto escreveu: Gustavo Martens. Esse ia ser seu protagonista. Agora, só faltava dar uma necessidade pra ele.

Aí ficou olhando pro próprio lá na quadra, suado, o topete desfeito, correndo que nem o Richarlison atrás da bola. Bateu a canela na canela de outro e foi pro chão na hora. Gemeu, xingou, saiu mancando. O professor o substituiu, o time perdia seu camisa 9.

Gustavo nem esperou a partida acabar, foi direto pro vestiário, uma zona proibida pra um cara florido que nem o Augusto. Se ele entrasse lá — já arrepiava tudo os cabelos do braço —, estava fodido. Iam zoar ele, bater nele, xingar de bichona e sabe-se lá o que mais. Mas tinha, sim, uma curiosidade de ir lá, uma bem pequena que guardava só pra si.

Nas raras vezes que aceitava jogar queimada espremido com as meninas no cantinho da quadra enquanto os caras ocupavam todo o resto jogando bola, ele passava pela entrada do vestiário masculino e sentia um bafo sair da porta. Um vapor quente fedido. Achava que era acúmulo de suor de vários anos. Mas nunca tinha entrado nem metido a cabeça dentro pra espiar como que era. Privava os olhos pra continuar engordando a curiosidade.

Caras do time da escola eram brutais e Augusto não se metia com eles — não os olhava, não retrucava suas piadinhas, não os respondia se lhe falassem, não andava na direção deles. Pensando agora, ele desviava é de todos os caras, do futebol ou não, embora, no fundo, quisesse muito ser próximo deles...

Às vezes, ficava se perguntando: será que são assim tão brucutus mesmo? Será que não sou só eu que penso que são assim?

Aí olhou as meninas lá longe. Elas eram da sua mesma sala e também estavam ali caçando inspiração pro conto da aula de português. Riam, cochichavam, apontavam um do time, riam de novo. Pra elas, era tão mais fácil entrar no mundo deles. Elas tinham algo entre as pernas que eles queriam. Tinham algo no sutiã que eles amavam. Pra elas, era fácil. Pro Augusto é que era osso. Como é que entra no mundo de caras assim sem atributos físicos tão... sem graça?

— Eca... — Ele contorceu a cara.

Mas queria. Como queria. Aí, ficava imaginando o que não conseguia ver de perto.

Sabia que se tomasse uma atitude súbita e entrasse no vestiário, firme, posturado, o Gustavo talvez não implicasse com ele. Às vezes, em casa, Augusto até ficava se empinando na frente do espelho do quarto da mãe — estufava os peitos, andava jogando os braços. Olhava bem de perto o seu rosto feminino, liso, sem nenhum pelinho que fosse, as sobrancelhas arqueadas demais. Aí as juntava, fazia cara de mau, sugava as bochechas pro rosto parecer ossudo, mais masculino. Muitas vezes, embolava uma meia e a botava dentro da cueca pra braguilha ficar mais volumosa. Fazia mil poses, ficava horas assim se consertando, achando jeito de arrumar a aparência defeituosa que Deus tinha lhe dado.

Na escola mesmo, já tinha ouvido todo tipo de piadinhas — que não importa repetir aqui. Importa que elas ficavam tatuadas no seu consciente e o acompanhavam a todo lugar quando estava em público. Andando na rua, lá estava o Augusto se consertando. Entrando no mercado, estufava o peito. Indo pra escola, unia as sobrancelhas, chupava o rosto. Saindo no recreio, andava duro, jogava os braços. Mesmo agora, sentado na arquibancada, ele se submetia aos rituais do conserto: a postura reta, desconfortável, os cotovelos nos joelhos, as pernas bem abertas, a cara amarrada olhando o futebol dos caras.

Mas era isso que lhe dava a confiança pra levantar, andar até o vestiário, entrar, cumprimentar o Gustavo, trocar de roupa, tomar uma ducha com ele, fazer gozação com as meninas, falar do jogo do Brasil, voltar pra aula e, no fim do ano, passar na média. Todos os caras do time passavam na média. Homem não precisava de nota 10 pra passar de ano.

No vestiário, inclusive, o Gustavo estava lá no banco, cabisbaixo, e Augusto ficou pensando se a canelada no outro cara tinha sido feia mesmo. Ele estava de costas, sem camisa, e tirava o meião da perna ferida com dificuldade.

Conforme Augusto chegava e falava com ele, o coração chacoalhando o peito magrelo, o Gustavo dizia que estava legal, só um pouco roxo onde levou a pancada. Os dois trocavam ideia, o Augusto o reanimando, e ia pro chuveiro com ele falando do trabalho da aula de português. Tinham um conto pra escreverem juntos.

Gustavo parecia não ter ideia de como fazer isso, não era bom de português, não sabia escrever essas coisas. Achava uma sacanagem a professora pedir que escrevessem um conto, e falava que ia colar das meninas. Aí o Augusto repetia que sim, bora colar da Joice ou da Vanessinha. Tiravam sarro dela. A Vanessinha zói de Fusca. Feinha, mas inteligente. Só tirava nota 10. Pelo menos, pra isso servia.

Iam juntos até as duchas, o Gustavo passava a camisa do ombro pro gancho na parede onde pendurava a toalha, e baixava o calção. O Augusto ficava caçando jeito de desviar a vista, o coração sacolejando sua carcaça ossuda, mas não tinha como: o calção embolado lá nos calcanhares, o Gustavo com os olhos baixos, e ele caçando o que dizer pro silêncio não esmagar sua confiança.

Então o registro do chuveiro girava e a água passeava pelo Gustavo levando o suor pro ralo.

— Tu não vai banhar não, ô, manja rola?

***

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