Céu Cor De Sangue

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No passado, havia doze infames nobres cujas riquezas eram tantas que os reis os invejavam. O domínio de suas terras se estendia muito além do horizonte, e eles possuíam influência sobre diversas nações. Por muito tempo fizeram do povo seus servos, criando rancor por onde passavam. Contudo, por mais que todo o prazer carnal que o mundo dos mortais pode oferecer estivesse no alcance de suas mãos, não se contentaram com suas próprias vidas e desejaram aquilo que só os deuses podem ter: a imortalidade.

Certo dia, eles se reuniram para discutir o tema e concordaram em ir atrás de um lendário grimório que guardava segredos sobre magia das trevas. Com todos os recursos que possuíam, não foi difícil por as mãos no maldito livro sem derramar uma gota de suor, apesar de quase todos os mercenários contratados terem morrido nas expedições.

Finalmente, estavam em posse do grimório, e nele estava escrito, juntamente de feitiços malignos, as formas como um mortal pode superar a morte. Entre elas, uma chamou mais atenção, pois era um ritual descrito como o único capaz de trazer a verdadeira imortalidade. Os dois primeiros nobres decidiram realizar o tal ritual, mas sem sucesso no procedimento, morreram imediatamente. Com medo, os dez restantes optaram pelos outros métodos.

Alguns tomaram um elixir que interromperia o envelhecimento, outros transferiram suas consciências para um corpo homúnculo que julgavam perfeito, e os demais se banharam em uma poção que os tornaria virtualmente invencíveis. E então os séculos se passaram, enquanto o poder dos nobres crescia e a miséria do povo se agravou ao longo das gerações.

Entretanto, em uma noite qualquer, a cor do céu sobre certas terras foi mudando lentamente, como sangue manchando lentamente um tecido. Depois o caos se instaurou. Os escravos tomaram as terras, as estátuas foram derrubadas, e um dos dez que acreditavam ser imortais foi decapitado por um jovem mascarado, com os cabelos prateados como a lua.

Os nove que sobraram sentiram, pela primeira vez em séculos, o medo da morte. Para eles, a aflição de que um dia só os restaria o esqueleto — indiscernível do de um escravo — e o tempo apagaria a glória de seus nomes da memória dos vivos era inadmissível. Essa revolta, porém, não os levou muito longe. Mesmo erguendo muralhas, cercando-se de soldados, ou mesmo com auxílio das magias das trevas, nada impediu a contagem regressiva de continuar. Seus corpos, jovens, fortes e construídos com suposta perfeição, se revelaram ser apenas o que eram: corpos mortais. De nove restaram oito, depois sete, seis, cinco, quatro, três, dois e o desespero roubou toda a paz do último. Paranoico, ele se trancou solitário em seu castelo. Olhou para a janela todas as noites desde então, até ver por fim o céu se tingindo lentamente da cor do sangue.

Quando tudo estava vermelho, o nobre tentou fugir do seu castelo. Correu em direção ao portão, mas do outro lado — barrando sua passagem — estava um homem de cabelos e vestes escuras, com um tecido preto ao redor do pescoço e olhos brilhantes de cor roxa.

— Tenha piedade, senhor dos espíritos — implorou pela vida, ajoelhado diante da entidade — Me arrependo dos meus crimes, então imploro por tua misericórdia.

— Acalme-se, pois meu juízo não recai sobre os vivos — respondeu seguido de um suspiro — Não sou o algoz de tua desgraça, apenas vim como observador a pedido de alguém que valorizo.

— Então me proteja — continuou a súplica, agarrando nas pernas do visitante — Eu lhe darei qualquer coisa, mas me proteja do que quer que esteja atrás da minha cabeça.

— Não há nada que eu queira de ti. Por favor, acalme-se se quiser partir com alguma dignidade.

— Isso não pode acontecer — gritou com o rosto coberto por lágrimas, sem nenhuma nobreza restante —. Depois de tanto lutar pelo poder que conquistei, eu não mereço esse fim!

— Estou tentando ser empático, mas você complica — disse enquanto se agachava para olhar aquele patético homem cara a cara —. Você sabe que enxergo a podridão do seu espírito, mas ainda mente para mim e para si que não merece o destino que conseguiu.

— Mas por qual razão os deuses vieram atrás de nós agora? Qual de nossos crimes foi tão grave que provocou vossa ira?

— Entendi — disse com um sorriso no canto da boca —. Você ainda não compreende. Você criou violência, fome e morte durante sua busca insensata por poder. O caminho que trilhou gerou desprezo, rancor, nojo, ressentimento e, por fim, vingança. Esses sentimentos são mortais, eu até chamaria de "humanos", se me perdoar o estereótipo.

— Se não são os deuses que vieram atrás de nós, então o que foi?

— Os vivos — Respondeu levantando-se, e continuou a falar olhando por cima em direção ao inconsolável nobre —. Aqueles que vieram atrás de você são os que lutam para recuperar a vida que lhes foi roubada.

— Se toda minha tragédia é a revolta da humanidade, quem seria o tal mascarado que disseram ter assassinado meus amigos?

— Não acredito que alguém como você, que foi educado sobre as antigas lendas, não reconheceu a descrição. O mascarado é um humano, mas também é imortal. Ele foi quem escreveu o maldito grimório e, com êxito, realizou o ritual. Ele já deve estar chegando, então é aqui que me despeço. Volto para te buscar logo.
O homem, perplexo, não conseguiu dizer mais nada enquanto a entidade se afastava do portão, caminhando para fora da residência. Outra pessoa vinha na direção oposta, em encontro ao nobre. Essa pessoa era um homem de aparência jovial, com uma máscara cobrindo o rosto todo e os cabelos da cor da lua.

— Você é o último — disse ele enquanto se aproximava com a espada em mãos —. Quer saber um segredo? Conto se me prometer que o manterá até o túmulo.

O que um dia fora o senhor de tantos servos agora estava ajoelhado no chão, sem forças para se levantar e correr. Por um instante, ousou tentar, mas suas pernas falharam e ele caiu pateticamente mais uma vez. Finalmente o assassino alcançou seu alvo e o provocou.

— Os requisitos para realizar o último ritual não foram escritos no grimório — disse, colocando a espada próxima ao pescoço de sua vítima —. Mas o primeiro deles é amar a própria vida, e o outro é estar disposto a aceitar a morte. Você também deve amar os vivos, mas estar disposto a abandonar sua própria natureza como um deles. Talvez seja difícil de entender, mas para resumir: quem deseja viver unicamente pelos próprios desejos, também morrerá por eles. Como todos nós.

O destino dos dez finalmente se encerrou e tudo que restou foram esqueletos. Todos os que um dia se consideraram os mais poderosos dos mortais deram seu último suspiro em um céu da cor do sangue.

Mitos De Mywo: Os olhos de ArthWhere stories live. Discover now