00. Prólogo

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"Donde pode nascer o amor? Talvez de uma súbita falha do universo, talvez de um erro, nunca de um ato de vontade." - Marguerite Duras, A maldição da morte.

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Apesar do doce aroma floral que emanava das velas perfumadas, o cheiro de mofo impregnava as paredes, forros, cortinas e tudo mais nos arredores. Era ubíquo* ㅡ onipresente ㅡ tal qual o ar que se respira, e inevitável assim como um nó na linha do destino. Apesar disso, nem os moradores e nem mesmo os visitantes se importavam muito ㅡ estavam todos entretidos de mais para dar atenção ao cheiro, que acabava por se tornar banal depois de uma ou duas bebidas. Os mais ousados, até mesmo trocavam suas taças de vinho tinto por uma dose forte de absinto.

Em pleno mês de fevereiro, Veneza estava em festa, fazendo de toda a cidade o grande salão de baile de seu anual carnaval excêntrico que já durava alguns pares de séculos.

Gôndolas* dividiam espaço com lanternas de papel e flores que flutuavam sobre o grande canal de Veneza, indo na direção que o vento as desejasse levar. Pessoas mascaradas transitavam pelas pontes, carregando em seus corpos os trajes mais sofisticados e extravagantes que qualquer par de olhos daquelas ilhas já havia tido o prazer de observar. Música ressoava no ar como o canto de uma sereia amargurada, e preenchia os ouvidos de todos que estavam por perto.

Em meio a todo aquele cenário deliciosamente caótico, vestindo-se como um Arlecchino* majoritariamente rubro, Park Sunghoon buscava por seu Pantalone* negro em meio a tantos corpos excitados e exageradamente perfumados.

Todos, incluindo ele próprio, estavam num estado de euforia intensa, provocada pela sensação libertadora de abandonar sua própria identidade por pelo menos uma noite. O carnaval na realidade, duraria dias a fio, mas o rapaz não sabia se teria a mesma sorte de conseguir escapar na noite seguinte.

Ali, ele não era noivo da segunda filha do Conde de Cavour. Ele não precisava manter aparências e a única máscara que usava, era aquela que o permitia agir livremente. Que ironia...

Seu coração, abaixo das roupas pesadas, batia mais forte todas as vezes que seus olhos cor de âmbar encontravam alguém que se assemelhava a ele. Logo depois, seu ritmo voltava ao normal, ao notar que se tratava de um outro qualquer.

ㅡ Vênus? ㅡ ouviu alguém exclamar no meio da multidão.

Era ele?

Bruscamente Sunghoon voltou-se na direção de onde o chamado havia vindo, já mordendo os lábios por detrás da máscara que limitava um pouco o seu campo de visão.

De pé sobre a ponte mais adiante, os braços cruzados sobre o peito e o meio sorriso convencido denunciavam a identidade de quem se escondia por baixo da fantasia preta. Os dedos finos com alguns pares de anéis e a postura engraçada complementavam sua imagem distinta.

Sim, era ele.

Sunghoon deixou o ar escapar de seus pulmões num suspiro audível, sabendo que a partir dali não haveria mais volta. Ele havia concordado em encontrá-lo, e agora que estava de frente para aquele homem, não teria como escapar de seus encantos novamente. Ele era a sua desgraça encarnada em pessoa.

Aquele jogo estava a poucos movimentos de finalmente acabar, mas agora, ninguém movia suas peças com esperteza alguma. Sunghoon nunca fora bom com esse tipo de coisa de qualquer forma ㅡ sofria de ausência de competitividade e estrategismo, além de seus instintos não serem nada aguçados.

Mas desta vez, diferentemente das demais, Sunghoon estava completamente ciente de onde estava se metendo. Ainda assim começou a se aproximar, dando passos largos e confiantes na direção do homem de vestes escuras.

Decidiu que rendição por amor parecia uma causa nobre o suficiente para sua ruína.

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Glossário:

Ubíquo - que está em todos os lugares ao mesmo tempo. Que se difundiu extensamente, universal.

Gôndola - tipo de embarcação usada como transporte na Lagoa de Veneza, na Itália.

Arlecchino - traduzido como arlequino, é um personagem da commedia dell'arte que normalmente se traja como um palhaço e tinha a função de entreter o público. Seus trajes coloridos se tornaram aos poucos um dos favoritos durante o Carnaval.

Pantalone - traduzido como Pantaleão é um dos personagem principais da commedia dell'arte, conhecido por ser libidinoso e avarento. Seus trejeitos e sua máscara lembram o de uma galinha.

Commedia dell'arte - vertente artística do teatro renascentista.

Venus as a boy • ENHYPENOnde histórias criam vida. Descubra agora