- Padre Cabral estava esperando há muito tempo?
- Hoje não dei lição; tive férias.
Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da
minha entrada no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele
coisas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se
podia ir cumprimentar o padre, à tarde, em minha casa.
- Pode, mas para quê?
- Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do
padre, é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.
O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez
que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça e, para dizer
tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita,
depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos.
Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação
não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava
ninguém; não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não
conhecia a violação de Lucrécia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela
artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final
do penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação
amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela
derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em
outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.
Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado,
que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque
ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar
mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este
gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e
cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás, inutilizava todos
os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a
lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça
dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia
agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente.
Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não
perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é
cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que
cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento
inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro
oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e
bastaria um pouco mais...
Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava
da repartição um pouco mais cedo, como usava às vezes. "Abre, Nanata! Capitu,
abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco,
mas só aparentemente; verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava
acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos.
Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado.
Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe que
abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as
mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o
pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e
deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de
mistérios.
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Dom Casmurro
ClassicsBentinho e Capitu são criados juntos e se apaixonam na adolescência. Mas a mãe dele, por força de uma promessa, decide enviá-lo ao seminário para que se torne padre. Lá o garoto conhece Escobar, de quem fica amigo íntimo. Algum tempo depois, tanto u...