CAPÍTULO XXXVII A ALMA É CHEIA DE MISTÉRIOS

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- Padre Cabral estava esperando há muito tempo?


- Hoje não dei lição; tive férias.


Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da

minha entrada no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele

coisas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se

podia ir cumprimentar o padre, à tarde, em minha casa.


- Pode, mas para quê?


- Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do

padre, é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.


O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez

que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça e, para dizer

tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita,

depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos.

Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação

não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava

ninguém; não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não

conhecia a violação de Lucrécia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela

artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final

do penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação

amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela

derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em

outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.


Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado,

que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque

ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar

mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este

gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e

cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás, inutilizava todos

os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a

lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça

dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia

agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente.

Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não

perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é

cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que

cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento

inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro

oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e

bastaria um pouco mais...


Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava

da repartição um pouco mais cedo, como usava às vezes. "Abre, Nanata! Capitu,

abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco,

mas só aparentemente; verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava

acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos.

Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado.


Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe que

abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as

mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o

pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e

deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de

mistérios.

Dom CasmurroWhere stories live. Discover now