I - APENAS MAIS UMA SEXTA-FEIRA

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Maldito cheiro de almíscar, cheiro de perfume falsificado, cheiro característicos de velhos aposentados e bêbados que passam o dia inteiro sentados em frente a uma televisão coçando os sacos murchos. São quase três horas da manhã.


- Meu nome é Karina. Detetive Karina, pode repetir? - Busco comprimidos para enxaqueca no bolso de meu casaco, assim como a porcaria desse governo busca por nossos impostos todo santo dia. É um daqueles dias de cão, e nada mais pode ser feito a respeito disso.


- Ora. Ora. Agora deu pra ensinar palavrinhas pro jardim de infância? - O comissário, Ok Taecyeon, com seus quarenta e três anos ainda vai demorar bastante a largar o osso da delegacia. Morre de medo de tirar um descanso do ofício, prefere manter a merda de seu cargo e me impedir de tirá-lo de uma vez. - O que pensa que tá fazendo?


- Como assim? Tô fazendo o meu trabalho. - Tiro meu bloco de notas, encontrando finalmente meus comprimidos, e anoto informações/endereços de para onde essa menininha vai. - Era o que você deveria estar fazendo também.


O ignoro pelos cinco minutos seguintes, o ouvindo fungar limpando esses pulmões semi-mortos de fumante que ele tem. Isso não me incomoda tanto quanto o cuspe perdido em meio à água da chuva que ainda escorria pela sarjeta diante da casa da garota.


- Então, detetive, seu trabalho é anotar coisas num bloco de notas em todos os casos que investigamos? - Levanto o rosto e dou de cara com a luz amarela de um poste, que não me permite enxergar bem o rosto de Taecyeon. Canalha. Permaneço sentada ao lado da criança de sete anos. - E eu já estou fazendo o meu trabalho, Karina, que é me certificar de que você esteja fazendo o seu! e não perdendo tempo cuidando de menininhas abandonadas sozinhas em casa, enquanto a mãe tá vagabundeando com algum macho por aí.


O cara mal respirou dizendo esse monte de besteira, olhando diretamente nos olhos molhados de lágrimas da pobre criança. O som das botas abrindo espaço entre as poças de lama até a viatura ficam pouco audíveis.


- Não ligue pra ele, tudo bem? - Afago os cabelos dela, presos por uma presilha pequena e cor-de-rosa.


Levanto assim que uma parente da menina, a tia, aparece, cortando a multidão de vizinhos curiosos que - certamente - apareceram devido aos gritos escandalosos dela. Vou de encontro ao comissário e, bem, soubemos que fim a mãe da criança levou quando nos chamam para irmos até a parte baixa do Han.

Pelo menos não precisamos ficar aqui até que um assistente social apareça para tomar conta da filha da vítima. Seria mesmo muito difícil contar para um serzinho tão pequeno e inocente que encontramos sua mãe no fundo de um rio.

Ficamos em silêncio dentro da viatura, minha cabeça lateja um pouco e aproveito para tomar o remédio. De certa forma, o barulho do motor e dos pneus sobre a água acumulada sobre a rua me trazem conforto. Meu expediente está quase terminando e terei o final de semana inteirinho livre. No entanto, esse conforto e calmaria duram até passarmos por uma boca de fumo. Taecyeon para o carro, descemos.


- Ei, seus filhos da puta! - Ele berra. Meus ouvidos e minha cabeça pedem socorro. - Mas, que bela bosta é essa, hein, Jay?


- Ah, qual é, tá querendo embaçar de novo, coroa?


Aparentemente, o comissário e o moleque se conhecem. Não quero nem saber como isso aconteceu. Aliás, tudo o que eu mais quero é que dê quatro horas para poder ir para casa o quanto antes e esquecer de todas as ocorrências da semana. Preciso descansar. Preciso de férias.


- Eu vou embaçar é essa sua cara, seu merdinha. Se falar de novo assim com um oficial da lei, te ponho numa cela apertada depois de ir te chutando daqui até lá. - Essa eu quero ver. Pelo menos um pouco de diversão nesta madrugada. - Esvaziem os bolsos, os dois, e tirem a porra dos tênis!


Não faço questão de me intrometer na dura que Taecyeon está dando nesses garotos. Eles sabem que não podem ser presos até ficarem maiores de idade. É essa a lei. No entanto, moleques encrenqueiros e arruaceiros como esses têm como lei as próprias mães, que fazem visitas e várias ligações durante a semana querendo saber sobre as crias. Ninguém tem ideia de quantas vezes precisamos repetir para elas que, sim, "conversamos" com seus filhos... isso sem nem ao menos os termos visto, ou trocado sequer uma palavra com eles, na vida.

Volto para a viatura e espero Taecyeon dar uma pequena lição nos dois moleques, principalmente no tal do Jay.

...


Quando o carro estaciona mais uma vez, no rio Han, somente eu saio. O comissário diz que vai conferir se aqueles dois voltaram para suas casas, isso ao som de uma risada sarcástica. Foda-se também, não me interessa. Confiro as horas, antes de ir até um cara da forense para buscar um café com creme e dar o fora.

* * *


Chego em meu prédio, e agradeço a carona do cara da forense. Ainda está escuro e Minjeong deve estar no décimo quinto sono. Tadinha, agora que está pertinho de terminar a faculdade de arquitetura e começou a trabalhar, vive exausta, sonolenta pelos cantos. Entro em nosso apartamento. O dividimos tem pouco mais de um ano.

Tomo um banho e depois esquento o jantar. Achei que não teria jantar para mim, porque brigamos antes de eu sair para a delegacia. Saí de fininho, antes que ela sentisse pena, me seduzisse e me chamasse de volta. Foi daí que a enxaqueca apareceu para me incomodar durante horas. Odeio discutir com a minha namorada. E nós temos discutido bastante nos últimos dias...

Assim que me deito na cama, não demora muito para Minjeong encontrar o caminho para os meus braços. E eu a aperto com tudo o que tenho, eu só tenho à ela, na verdade. Aspiro todo o cheiro bom de seus cabelos loiros. O cheiro de Minjeong me faz lembrar de nós duas andando pela passarela ao lado do rio, cantando músicas aleatórias sem sabermos as letras. Gosto de saber como esse corpo pequeno e cabelos dourados continuam me abrigando depois de tanto tempo.


Não quero que nosso gozo de saudade vire um beijo de despedida. Nunca.

Ciúmes e outros casos de amorOnde histórias criam vida. Descubra agora