eyes don't lie

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Carol

Gostar de alguém que pode ocasionalmente te matar por conta da raiva não é o ideal. Se apaixonar por uma guerreira intergaláctica com espadas absurdamente grandes e conhecimento o suficiente para te matar por conta da raiva é ainda pior. Vou ter que confiar no bom senso de Valkyrie de não ter um surto na frente dos asgardianos de modo que ela pareça uma Rei insana. Não sei o que esperar, de verdade. É a primeira vez em tantos anos.
Não vou mentir, para alguém com tantos poderes quanto eu tenho, Valkyrie me deixa nervosa de uma forma estranhamente engraçada. Me sinto uma adolescente indo para o primeiro encontro enquanto tento me arrumar em minhas roupas mais terráqueas e chiques possíveis. Preciso passar a impressão de ser um pouco diplomática quanto a fazer um acordo de abrigo à Skrulls desta forma. E talvez também queira impressioná-la.
Mas o melhor que consigo é me colocar em uma camisa preta de botões justa e minha calça social usual. Os cabelos também não ajudam muito. Existe tratamento para frizz causado por viagens na velocidade da luz pela imensidão do que é nosso universo? Tenho certeza que com os dias de hoje eu criaria uma marca se me aprofundasse nesse assunto.
A primeira pessoa que reconheço de longe quando chego em Nova Asgard é Fury. Quem mais seria, parado ali com seu olhar mortificante e seus casacos escuros? Embora ele pareça mais aposentado do que o usual. Roupas mais simples, e não está mais usando tanto o tampão de olho. Não sei o que o tempo aqui têm feito com meu amigo de longa data.
-Fury-digo em voz alta, fazendo-o me enxergar. Ele estava totalmente em órbita antes de me ver.
-Lasertag. Quanto tempo que eu não te vejo pessoalmente-ele diz, me dando um rápido abraço-Mas ainda não bateu o recorde de 30 anos ausente na Terra desde 1995.
Sinto um aperto no peito quando escuto-o dizer isso de forma tão natural. É claro que eu tenho total consciência que não só passei três décadas fora de meu planeta natal, como passei três décadas longe da Monica. A Capitã Problema nunca deixou de pairar minha mente quando pensava em simplesmente vir para casa e me aposentar desta vida. Eu não devia nada à ninguém. Mas também não conseguiria me sentir bem se soubesse que havia uma tragédia ocorrendo no qual eu poderia evitar. São dois pesos que não consigo carregar direito, então me sinto sufocada, como se ambos estivessem presos a meus tornozelos e me afundassem cada vez mais. Salvei tantas pessoas, tantos mundos, mas a que custo? Perdi a vida dela inteira, o mais próximo que eu já tive de uma filha.
De repente, e não sei realmente o porquê, me imagino tentando uma nova vida, com Monica incluída, obviamente. E se eu pudesse fazer parte da vida dela como família? Ela gostaria que eu estivesse em casa para seus aniversários, ou Natais? E se ela tiver filhos? Serei algo próximo do que Maria seria para ela? Conseguiria lidar com essa responsabilidade? E melhor, e se eu pudesse ter uma vida com Valkyrie? Essa ideia súbita me enche de tanta paz que quase me sinto completamente leve. Morar em uma das casas aqui na encosta, ouvir o mar todas as manhãs com ela em meus braços. Nada além de uma vida normal, ela liderando um povo, e eu a apoiando. Os dias seriam de calma e tranquilidade. Noites à fio conversando, talvez dançando as músicas lentas que eu sei que ela escuta. Beijos a todos os momentos possíveis. E que Deus me perdoe por cada pensamento impuro que também me ocorreu pensando se eu tivesse ela para mim todos os dias até onde a jóia decidisse me levar, até onde minha vida se alcança.
Não sei o que não daria para ter essa vida, de fato.
-Sabe como são as coisas lá em cima-suspiro, colocando as mãos em meus bolsos-Algumas coisas lá fazem o Thanos parecer uma criança malvada em um playground empurrando os menores na areia. Não é uma vida muito agradável.
-Bom, tenho certeza que todos aqueles mundos não vão se importar de você tirar umas férias. Eu já tirei algumas na vida, e olha que eu já tive mais armas apontadas para minha cabeça do que posso contar.
-Acho que mesmo assim, as férias na Terra não são o mesmo no espaço. É impossível relaxar lá. O que dizem sobre nebulosas e galáxias vistas a olho nu? Não é exatamente o Havaí intergaláctico que aparenta ser.
-Bom, então relaxe na Terra. Aqui.
Dou uma risada sincera.
-Tenho certeza que a minha garota não vai me querer aqui. Além do mais, não quero incomodar. Não vim aqui nem para passar à noite. Estou partindo assim que tudo acabar.
Fury me dá um olhar quase me repreendendo, e não sei da onde isso veio, então o confronto.
-O que esse olhar quer dizer, Nicholas Fury?
-Sabe, para alguém que enfrentou um titã no mano a mano, você é uma covarde quando se trata de mulher. Especificamente daquela mulher.
Cruzo os braços, quase batendo o pé como uma criança.
-Eu não sou covarde.
-Então o que tem te mantido afastada dessa forma!? A Monica? Não acho que a raiva dela tenha mudado com cinco anos a mais sem você.
-Quando eu escolhi guardar o Universo de problemas que muitos povos eram incapazes de lidar sozinhos, eu não me tornei um exemplo exatamente. Crianças xandarianas não aprendem sobre mim como as crianças daqui aprendem sobre Marie Curie. Eu fiz coisas ruins, Nick, coisas que eu honestamente não me orgulho e nem sei se posso mudar. Eu não quero que elas vejam essa parte de mim. E mesmo que visse, que vida ela pode ter comigo!? Viajar na nave, nunca ter um lugar só dela? E os asgardianos!? Nós dois sabemos que eu já parei de me dar ao luxo de ser alguém normal há anos, e você não faz ideia do quanto me dói não ter ela, do quanto...
Minha voz se embarga levemente. Não sou de demonstrar emoção dessa forma, mas como eu disse, Valkyrie atiça meus maiores sentidos.
-Jesus, você precisam se acertar logo, essa situação deve está mexendo com seu psicológico mesmo.
Respiro profundamente e volto a olhá-lo.
-Sem querer te tirar, Fury, mas o que te faz pensar isso? O que eu disse ou o fato de que sinto dor na minha garganta cada vez que quero chorar por ela?
Ela ri, caminhando em direção ao prédio atrás de si mesmo.
-Você nunca me chama de Nick-ele responde, sua voz se afastando.
Aquela mulher ainda vai me enlouquecer.
***********************************
O prédio em questão não parece ser tão diplomático quanto eu pensei que deveria estar, para não destoar do resto. Na verdade é um hall bem convidativo. Uma mesa comprida com cadeiras e janelas enormes que preenchem as sala de luz. Apesar de já ter visto mundos inteiros, nada parece tão reconfortante quanto a luz deste Sol. O meu Sol.
Não reconheço muitas pessoas na sala além de Fury, e sua esposa Varra, que provavelmente também está se responsabilizando pelo problema. Mas a grande maioria é nova para mim. Talos realmente superpopulou nosso mundo com alguns milhões de Skrulls, e estes são só os que tavam aqui perto. Sinto novamente aquela dor incômoda. Tanta gente que confiava em mim, e eu os abandonei. Nunca parei de procurar uma casa para eles, mas também nunca o fiz de modo emergencial como deveria ter sido feito. Com tantos problemas, coloquei meus amigos metamorfos em segundo plano há anos. Que eu possa mudar isso agora com Valkyrie. Não consigo imaginar a dor de ser um povo sem planeta, sem um lugar para chamar de seu, vendo suas vidas correndo risco pelo medo e repugna que os seres humanos teriam de ver quem eles realmente são.
"Humanos." ecoo em minha mente. Quase esqueço que também já fui assim.
Depois de muitos rostos esverdeados e orelhas pontudas, eu a encontro. À minha frente, a alguns passos de distância, tão perto que quase consigo sentir minha pele formigando, procurando incansavelmente pelo toque que me completa.
Dizem que olhos são a janela da alma. Ouvi isso a minha vida toda, mas nunca entendi de fato. Era algo tão metafórico que não fazia sentido para mim. Até eu me tornar a Capitã Marvel, e ver a vastidão acima de nós. Em cada canto que eu ia, eu não me via sem ela. Em cada lugar, eu a via, nos cheiros, ou toques, ou até em alguém que me lembrasse ela. E depois de tanto tempo longe, algo em mim entendeu que, não importava aonde eu fosse, a Valkyrie fazia parte de mim. Cogitei por muito tempo se a minha alma já conhecia a dela antes dessa existência. Se não havíamos deixado uma realidade diferente, onde nos amávamos, onde estávamos juntas, para nos reencontrar aqui, talvez longe, talvez perto, há cem ou cem milhões anos luz. Não tenho certeza de muita coisa, mas sei que meus olhos guiam a minha alma áquilo que ela já conhece. Como se algo dentro de mim jamais tivesse esquecido esses pequenos momentos, as lembranças escritas em mim. Se existe um multiverso, sei que parte de mim está fadada a sempre amá-la, não importa onde estejamos. E nossos olhos sempre saberão que nos encontramos, porque eles são a janela da minha alma. Da alma dela.
E nesse exato momento, quando ela desvia seu olhar dos Skrulls que cumprimenta e me encontra no fundo da sala, é só isso que penso. Que nós estamos vendo o mesmo uma na outra. As pessoas que fomos, e quem poderíamos ser. É avassalador e reconfortante ao mesmo tempo. Sei que sempre terei minha Valkyrie por perto, mas essa não é a realidade onde eu sou o amor da vida dela, onde sou alguém que merece isso. E de forma tão brusca, me sinto despencando como se a gravidade me puxasse com suas mãos enormes em direção ao solo.
Valkyrie é a minha maior tragédia de amor.
Alguma coisa em mim transparece minha insegurança sobre ela, porque Valkyrie desvia o olhar de forma brusca e volta a agir com indiferença sobre mim.
-Bom, agora que estamos todos aqui-ela se refere à minha chegada mas enfatiza o quanto quer agir como se eu não estivesse ali mesmo que eu esteja de fato-Podemos começar, Fury?
Todos os olhos se voltam para mim, e logo depois para ele, esperando uma resposta afirmativa. Fury dá uma inclinada de cabeça como quem diz sim, e escuto-o murmurar antes de todos encontrarem seus lugares:
-Quando foi que eu virei terapeuta de casal?
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Todo o processo leva menos de uma hora. Não há muitas discussões ou exigências. Nova Asgard concorda em abrigar Skrulls porque, quando criaram um novo lar, sabiam que ali deveria ser onde povos intergalácticos se sentiriam seguros enquanto procurassem casas em outros planetas ao decorrer do tempo, considerando em como muitos ficaram completamente desfalcados depois de Thanos. Obviamente, regras de convivência são ditadas e acordadas com o consenso de todos. É estranho pensar que, da mesma forma que você deve respeitar o que outros países te pedem quando você os visita, planetas também têm suas próprias individualidades e precisam entrar em acordo sobre.
Mesmo que tudo seja rápido, eu não posso evitar me entediar depois de 20 minutos a fio, e só realmente prestando atenção quando é minha Valkyrie falando.
"Nunca a chamei de minha Valkyrie." penso comigo mesma. "Eu deveria chamar."
"Se ela de fato quiser alguma com você depois de tudo o que você fez." escuto outra voz dizer em minha cabeça.
"Viver no espaço tem te deixado louca, Carol" uma terceira voz responde.
-...Capitã Marvel?-escuto Valkyrie dizer ao longe. Me atinge como um baque, e de repente me sinto eletrificada, como se as notas da sua voz penetrassem diretamente minhas terminações nervosas. De repente, tenho consciência de que todos na sala me olham, inclusive Fury que me fita com seu olho bom como se dissesse com sua voz rouca "Se recomponhe, mulher".
-Ah, eu...-limpo a garganta e ajeito a postura a fim de não deixar transparecer que estava completamente aérea-Desculpe. O que dizia, Rei?
Chamá-la de Rei parece enfurecê-la. É como um afronte ao tratamento de gelo que ela está me dando, afinal quem começou a me chamar formalmente para agir com indiferença foi ela, e não eu. É como se eu quisesse ter o controle da situação, e na verdade só estou com medo de proferir qualquer coisa e acabar aborrecendo-a.
-Está de acordo com esses termos? Considerando que você era a pioneira na missão de encontrar um lar para os Skrulls?
-Ah...-eu não ouvi uma palavra do que ela disse, mas ela não precisa saber disso-Sim, de acordo. Com toda certeza.
Ela acena da maneira mais indiferente possível à mim e se levanta, com seus dedos longos arqueados sobre a mesa de madeira. Que saudade daquelas mãos me tocando. Que saudade de tocá-la, de fato.
-Asgard nunca foi um planeta, ou um reino. Asgard é nosso povo. São os que hoje vivem aquilo que nossos antepassados criaram. Nos perdemos entre manter uma nação poderosa e defender aqueles que não tinham o quê nós tínhamos. Thor me deixou no encargo de nunca esquecer o que ser asgardianos significa. É com orgulho que, hoje lhes abrigo com os braços abertos de forma genuína, para que amanhã estejam do meu lado contra qualquer mal que aflija a nós, e ao futuro de nossas crianças. E saberei então que não precisarei e nem vocês, de um poder flamejante vindo dos céus, para defender meu único lar: o meu povo. Saberei que posso confiar novamente-seu olhar se direciona à mim quando termina, e me sinto envergonhada como naqueles sonhos em que se imagina apresentando um trabalho escolar na frente da turma, mas suas roupas simplesmente sumiram. Me sinto assim. Completamente desnuda aos olhos de águia dela-Que minha confiança cega não permitirá que eu sofra, nunca mais.
Todos se levantam e batem palma, ovacionando-a. É claro que é do feitio dos asgardianos fazer um discurso emocionante para ter a palavra final, e Valkyrie sabe bem como fazê-lo. Cada palavra me atingiu de forma abrupta e intensa.
Os skrulls se mantém na sala por mais alguns minutos falando com ela. Olhando-a de longe, Valkyrie não é tão durona. Não tem tanta tensão sob seus ombros ou nervosismo em suas palavras. Ela é sincera, porém cativante. Mesmo inseguras, as crianças Skrull se aproximam com sorrisos. Observo-os brincando e logo depois tocando suas longas tranças castanho escuro. Essa visão não me ajuda em nada para afastar meu pensamento de ter uma vida e uma família com ela. Ela seria uma mãe incrível.
Quando o número de pessoas parece diminuir, decido que esse é o momento de deixar aqueles 20 segundos de loucura me tomarem e falar com ela. Mesmo que eu ache que eu não a mereço, nada acalma essa chama dentro de mim que só se intensifica com a vontade de olhá-la nos olhos novamente e ouvir sua voz diretamente à mim sem a frieza toda. Mas antes que eu possa sequer cumprimentá-la, uma mulher surge para abraçá-la. Sinto um nó no estômago como se alguém o tivesse amarrado com as próprias mãos. Será que...
As duas parecem íntimas. A mulher em minha frente não é muito alta, mas tem braços consideravelmente fortes. De repente tomo consciência do meu próprio corpo. Sou atlética, mas muito longe de ter músculos. Será que agora ela gosta de mulheres com músculos? Os cabelos são loiros e longos, e o rosto é sereno e delicado. Ela me faz pensar nas bailarinas do Lago dos Cisnes, flutuando ao invés de caminhar, o que é impressionante para uma mulher parruda como ela.
Elas não se afastam nem por um instante. Meu coração parece bater tão forte dentro do peito que vai ser ouvido aqui de fora, mesmo com camadas e camadas de veias e músculos sobre ele. Minha expressão deve ser a mais ridícula possível agora, então decido que é melhor evitar uma humilhação maior ainda de ser notada como se eu estivesse interrompendo as duas.
Dou meia volta para fora do prédio, sem conseguir tirar da cabeça a forma como ambas sorriam. As mãos dela sobre os braços de Valkyrie. O abraço caloroso. É tão doloroso que chego a me sentir enjoada.
Mas o que eu deveria esperar? Que Valkyrie caísse em si e de repente viesse correndo aos meus braços para um beijo intenso, e todos na sala aplaudiriam? Em que mundo estou vivendo? Passei os últimos anos lutando com mercenários. Vi mais carnificina e sofrimento do que uma pessoa deveria ver. Não sou esse alguém que vai ir para casa com Valkyrie, preparar um chá e observar o resto do dia se pôr junto ao Sol. Essa é uma realidade bem longe da minha, e já está na hora de eu, uma mulher adulta, que carrega a responsabilidade do poder de uma jóia do infinito, parar de sonhar como uma adolescente boba em seu quarto juvenil.
Valkyrie é o amor de outra pessoa. Eu não sou o amor da vida dela. Nós não somos o amor uma da outra. E por mais que não consiga engolir isso, não posso mudar. E não posso prendê-la ponto de deixá-la infeliz. Mas ainda dói tanto.
Que merda.

Carol and ValkyrieWhere stories live. Discover now