Depois da fronteira

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Chegamos à fronteira Iraque-Turquia e ziguezagueamos uns vinte minutos descendo uma montanha para alcançarmos o primeiro ponto de fiscalização que nada mais era que um guarda armado postado na estrada em que seguíamos, daí em diante seguimos na van, eu, o cônsul, o Gil, e o cozinheiro do consulado, e uma passageira enigmática, jornalista britânica com passaporte francês. paramos outras vezes para o mesmo procedimento de entregar passaportes e seguirmos adiante até que chegamos em território turco.

Como estávamos na iminência de uma guerra, o que se via em frente ao prédio eram pilhas de garrafas de água mineral, possivelmente confiscadas. Como nosso "motorista" seguiu em frente achei por bem dizer que devíamos parar pois ali era a alfândega. tolice minha pois ele era um diplomata e devia ou deveria saber o procedimento. ele sequer me respondeu, seguimos viagem por uns cinco minutos e fomos cercados por uma viatura militar cheia de homens armados. o cônsul desceu da van com o passaporte na mão gritando "DIPLOMACY" umas cinco ou seis vezes. em seguida um militar tirou o Gil da van levou-o até a viatura e sentou-se ao meu lado, com sua metralhadora pousada no colo apontando para meu lado. ato contínuo toquei a ponta da arma com meu dedo e empurrei um pouco pra frente o militar me olhou e eu fiz uma careta e dei de ombros, ao que ele prontamente a colocou entre suas pernas com a ponta para cima. chegamos à delegacia e entramos, o lugar parecia mais com uma guarita pois era muito pequena e estava cheia de policiais ao entrarmos alguém pisou no cachorro que também disputava um lugar aquecido e prontamente a jornalista o socorreu, depois de um breve diálogo; se é que podemos chamar de diálogo; entre o cônsul e o policial retornamos ao escritório da fronteira, assim que chegamos fomos interpelados por um senhor que se vestia com jeans e era brasileiro que perguntou: o que é que vocês aprontaram? ele era o cônsul do brasil na Turquia, fiz um breve relato e adentramos o escritório. O funcionário responsável, todo solícito carimbou o passaporte do cônsul com direito a paninho para evitar borrão e em seguida o dos meros mortais sem a deferência do paninho. seguimos por uns cento e cinquenta quilômetros, agora em carros separados o cônsul e a jornalista num Mercedes com motorista, e um motorista nos conduziu na van até chegar em um hotel na estrada em que permanecemos por umas duas horas, tempo para um banho e uma refeição, em seguida partimos rumo a Ancara. Passamos por uma paisagem digna de filmes de ficção científica com pedras enormes e perfeitamente circulares, o que me ocorreu foi que seria um poço de lava borbulhante que esfriou muito rápido. em seguida encontramos uma companhia militar estacionada à beira da estrada. Após umas cinco horas paramos em um local na estrada para comer e descansar um pouco, sentamo-nos em uma mesa e pedimos a refeição. Fomos ao balcão e solicitamos cerveja, o atendente abre um alçapão e tira do engradado três garrafas que estavam bem geladas tendo em vista que a temperatura fora do ambiente em que estávamos era uns dez graus abaixo de zero. Entramos em uma auto estrada que seguia pelo vale entre duas cadeias de montanha, e do carro podia-se ver a neve derretendo e descendo a montanha. isto foi algo memorável. Seguimos viagem e a certa altura na subida de uma montanha o carro "apaga" no meio de uma estrada super concorrida com um tráfego intenso e sem acostamento desci rapidamente pois o risco era muito alto porém a temperatura devia estar próximo de vinte graus abaixo de zero e a sensação térmica uns "duzentos" abaixo de zero, o Gil rapidamente tentou e conseguiu ligar o carro e o colocou em um espaço parecido com um estacionamento na lateral da estrada a uns trinta metros acima. O que eu pensava era o que qualquer mortal pensaria, ou seja: vamos congelar aqui. Menos de dez minutos depois uma viatura da polícia chega para nos socorrer, em poucos minutos o Gil e o motorista entram na viatura e seguem rumo a cidade para conseguir um mecânico para fazer o reparo. Eles retornam com o mecânico que rapidamente faz o reparo e seguimos viagem, duas horas depois, paramos em uma cidade por nome Adana, uma cidade industrial, fomos a um hotel bem sofisticado com acomodações muito boas, ao chegar no quarto o Gil não consegue abrir a porta e eu cansado e com dor na coluna me deito no corredor, quase que por mágica chega um funcionário e me pergunta se estou bem, apenas cansado eu respondo, entramos no quarto com lençóis de seda e super bem decorado. após um banho de imersão durmo o sono dos justos; nem tão justos; acordo refeito para um café da manhã com direito a comer cedo, coisa que não fazia há tempos, pois devido ao consumo exacerbado de álcool perdera o hábito de comer pela manhã.

Retomamos a viagem até Gaziantep e ficamos sabendo que a guerra havia começado. Dormimos e logo cedo rumamos para Ancara o destino final de uma viagem de 2100 km. tínhamos em mãos um papel com o nome do hotel que ficaríamos, porém o motorista sem conhecer a cidade e sem nenhuma experiência em cidade grande, visto que entrou na contramão em uma avenida dupla se perdera. pedimos que parasse em frente a uma loja de aluguel de automóveis, desci com o papel em mãos e perguntei em inglês ao funcionário se ele sabia onde era o hotel, ele me explicou que era só subir a rua duas quadras virar a rua à direita e entrar à direita na avenida e o hotel seria visto em seguida. Então solicitei que ele explicasse ao motorista pois a comunicação com este era impossível, tudo explicado embarcamos e seguimos para o hotel e o motorista conseguiu errar a avenida, falamos com ele para voltar e ele faz uma manobra a uns 50 metros da entrada da embaixada americana que tinha uma barricada fortemente armada na rua. pensei comigo, agora fud&u. Feita a manobra avistamos o hotel e chegamos. Ao desembarcamos, ou estavam nos esperando ou pela placa do carro estar escrita em árabe um pelotão de repórteres nos cercou querendo saber notícias do "front". como não vimos nada específico nos deixaram seguir. fizemos o check-in no hotel e pegamos o elevador para o andar do nosso quarto e encontramos um casal que vinha da garagem certamente, ao nos ouvir conversando a moça nos pergunta em português se éramos brasileiros sendo ela mesma de sete lagoas e o marido um francês que trabalhava com radares. Ali mesmo marcamos para jantarmos juntos. Após o banho descemos eu e Gil para o restaurante e nos sentamos no balcão do bar, pedimos cerveja ao bartender que prontamente nos atendeu já oferecendo batatas chips. engrenamos um papo e ao saber que éramos brazucas, pediu licença e foi falar com os músicos que se preparavam para se apresentar, ao voltar disse que pediu uma musica em nosso nome e fomos brindados com uma versão turca de "garota de Ipanema". No balcão um britânico sentado ao nosso lado entrou na conversa, perguntei a ele sobre os canecos enormes que eles usavam para tomar cerveja, dos quais ouvira falar e até os vira em filmes. Me disse que eram de meio litro e a cerveja era muito forte, na ocasião fiquei surpreso, mas agora ao beber na Alemanha me perece bem razoável.

Dez minutos mais tarde eles chegam e vamos para a mesa, pedimos a comida e tomamos mais cerveja. Quando chegou a refeição avisei a todos que não mais beberia, nunca consegui comer bebendo álcool. conversamos sobre a viagem e sobre o evento na fronteira. falei sobre a exuberância das montanhas e da beleza do vale que a autoestrada serpenteava por muitos quilômetros. comentamos sobre o degelo de neve que vimos sobre o pico de uma montanha devido ao sol que brilhava poderoso em um dia gelado. ,o que o amigo francês disse ser bem comum na Europa. a noite ia alta quando resolvemos ir dormir pois iriamos voar para o Brasil no dia seguinte.

Acordamos cedo e após o café da manhã fomos ao banco trocar dinheiro para comprar as passagens, ao sair do hotel tive um choque de realidade com a neve, cedo ao acordar observei a neve por todos os cantos, sobre casas, árvores, carros e até postes de energia. tudo lindo como nos filmes. Na rua era outra coisa, os trilhos de neve enlameada e as roupas das pessoas todas com respingos de lama. Aquilo era inacreditável. Compradas as passagens voltamos ao hotel e já na recepção um burburinho devido as notícias da guerra que davam conta de ataques com mísseis a instalações militares e já se falava na escalada das mortes inclusive de civis. No quarto liguei a tv para ver as notícias como não tinha BBC foi CNN mesmo e a mesma ladainha de mortes e bombardeios. O primeiro trecho da viagem era rumo a Frankfurt, foi tranquilo, desembarcamos, e na alfandega o agente me perguntou o motivo da visita, disse a frase que havia ensaiado durante toda a viagem: "sou refugiado", voltando hoje mesmo para o brasil. Nosso voo para o Rio de Janeiro, estava previsto para às 23:30h, fizemos o check in, e na hora do embarque tivemos que reconhecer as bagagens, devido à ameaça de bomba. Resultado: O voo que já estava atrasado, saiu com mais duas horas de atraso, como só conseguimos passagens na primeira classe, o circo estava armado, a aeromoça me oferece uma bebida, "temos cerveja, ou whisky, blended ou scotch". Jogou o sapo n'agua, "scotch por favor", a refeição com caviar, foi ótima, provei um pouco daquilo no prato do Gil e confirmei minhas suspeitas, ovo de sapo, e cru ainda por cima. Guardei a lata de salmão na bolsa, depois da refeição. Após a retirada dos talheres, a aeromoça me disse que a garrafa de whisky estava sobre o balcão, em um recipiente para evitar que caísse, afogou o sapo, bebi a garrafa quase toda, e desembarquei bêbado no aeroporto do Galeão.

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