entre melancias e livros

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vou lavar a minha pele com doses de esquecimento.

você vai escorrer como um óleo pelo meu corpo e no banho seguinte já nem estará aqui.

a gente demora meses, até anos, pra esquecer o perfume de quem se amou muito. eu me esqueci do seu depois de 176 dias. você ainda se lembra do meu?

não importa, só queria dizer que esqueci. mas que eu também te vi passar por mim no centro da cidade. me escondi na primeira quitanda que avistei e você passou, indiferente. a vida é engraçada porque meses antes éramos o casal mais apaixonado de São Paulo.

hoje, se me visse sendo atropelado por um carro a 200 quilômetros por hora me deixaria lá, agonizando. o momento exato em que nos tornamos estranhos eu não ouso lembrar. sequer palpitou que tenhamos nos transformando em estranhos ainda juntos.
será que já não estranhávamos de muito antes?

eu sei que amei você porque você oferecia conforto e estabilidade, a sua mão era uma grande depressão geográfica que aninhava meu tremor de terra por qualquer mínima coisinha que me feria neste mundo.

mas agora, agora somos dois países em conflitos de interesses que por muito tempo se beijavam e até trocarem carícias.

você me olhava dentro dos olhos enquanto estava em mim, eu sussurrava feito um animal que está prestes a ser abatido. o amor nos tornar frágeis. você poderia ter me cortado do rabo à cabeça e ainda assim eu te daria minha mais afetiva intimidade. era o meu peito, meu medo, minha insegurança. era a sua insegurança, o seu medo, o seu peito. porque não prevíamos o fim.

ou se prevíamos, era algo tido em mente como canonizado e santo.

finais são contemplativos. vou te observar indo embora da minha vida sentado no terraço do prédio mais alto da cidade. vou te observar tropeçando em outras pessoas, livre e feliz por estar andando e correndo.

um sistema livre pode ser a falha de Deus mais bonita de ser vista.

você vai a festas, encontra outros corpos a fim da mesma coisa que você, se desintegra em outras vidas.
você é um sistema à procura de um pouco de liberdade porque tudo ou quase tudo é prisão: anúncios de publicidade, um pouco de álcool aos finais de semana, terapia toda quinta-feira. tudo é uma droga e o nosso amor era uma.

estou me lavando de você.
as minhas células, espertas que são, já fazem o trabalho e, em reunião com meu organismo, tecem uma estratégica de expulsão.

na semana passada cortei o dedo numa farpa, mas não chorei porque isso me tornaria reminiscente daquela vez que você me feriu e eu permaneci na proa do barco.
hoje eu tenho como escolher agachar no escuro pra chorar a dor do dedo ou permanecer intacto, incólume pela idéia de você.

tomo banho pensando que, se minha memória se esqueceu da sua facilmente, outras  coisas também serão esquecidas, talvez por osmose.

o mini topete no seu rosto mais ou menos redondo.
a maneira trêmula com a qual demonstrava o prazer.
a estranheza do meu amor te causando arrepio.

as coisas aparecerem e eu me escondi entre abacaxis e tomates pra que você não me reconhecesse. eu não podia me dar ao luxo de querer sentir o teu cheiro no presente -como iria seguir a vida e lembrando da maneira como você respira no mundo?

preferiria me agarrar no escuro que não é saber.

não saber de você me salvou várias vezes do choque anafilático: eu corri pra aquele lugar, onde você não supunha que eu estaria, e o mundo seguiu.

os carros continuaram passando abruptamente pela avenida.
o dia irritantemente quente e devastador.

a quitanda continuou vendendo frutas e verduras aos moradores do bairro.

você só é você dentro dessa constelação irônica a que chamamos de vida: o banho acabou e
tudo escoou pelo ralo.

Textos cruéis para serem lidos rapidamente IIWhere stories live. Discover now