• O beijo de uma fada.

24 3 31
                                    

    Floreen ouviu o som de um suspiro. Muito longo, muito pesado. Quando ela ergueu o rosto, viu que toda a atenção de Ayan estava voltada para ela. Não sorria, não parecia estar prestes a jogar uma piada cruel no ar, sequer julgava ou desdenhava. Se tornou algo totalmente desconhecido até então, como se tivesse se desfeito de todos os títulos e camadas de superficialidade. Emoções não eram algo com o qual os vampiros se dessem bem em primeira instância, eram seres muito racionais no que tangia aquela área, o   desequilíbrio cultural nesse âmbito nunca fora tão evidente. Mas o choque enfim atingiu o rosto dele, quando Floreen pronunciou suas próximas palavras.

— Ayan. — Ela pediu, um desespero profundo na voz tão doce. — Você poderia apagar minhas memórias? Poderia me fazer esquecer o dia em que te conheci? 

      Embora estivesse perguntando, Floreen sabia que ele poderia fazê-lo, com a mesma facilidade com a qual ela respirava. A capacidade que Ayan tinha de entrar e virar de cabeça para baixo qualquer mente que quisesse, era o que fazia dele quem era. Era uma coisa muito simples, entretanto, ouvir aquilo da boca da própria Floreen pareceu afetá-lo mais do que qualquer coisa que a Fada já lhe dissera antes, mas do que qualquer coisa que ele já ouvira na vida. Pareceu tão ofendido que poderia tirar a vida dela ali mesmo, naquele exato momento por tamanho despeito. Ayan já matara por muito menos que isso. Floreen viu um vinco se formar naquele rosto etéreo, e só então percebeu a marca de uma cicatriz em sua testa, escondida pelos cabelos loiros.

— Me ouça. — Ele pediu. 

Os olhos de Floreen ainda se fincaram entretidos por aquela cicatriz ainda mais um segundo antes de se abrirem em surpresa pelo que acabara de ouvir. Ayan Doria era do tipo que nunca pedia nada, para ninguém. Ele era o senhor das terras vermelhas, sangue antigo circulava por suas veias com orgulho suficiente para que ele jamais tivesse que implorar alguma coisa. No entanto, embora Floreen não soubesse, já era a segunda vez que os lábios dele externavam uma intercessão naquele dia. A memória da expressão assustadora de seu irmão gêmeo, Siatrich, coberto de sangue e ódio, fora o que tornou as decisões de Ayan tão reais. Seu rosto agora se virara uma névoa sombria,os olhos se  faziam repletos de cansaço e confidências que apenas alguém velho demais e com mais cicatrizes do que poderia contar era  capaz de refletir. O pedido audacioso de Floreen pareceu se perder completamente diante do ressoar da voz dele.

— Depois de nosso último encontro, eu fui orgulhoso em pensar que você estava sendo tola e desfavorável a nossa própria situação. Eu nunca, em momento algum, desejei tirar sua vida. Talvez no início eu realmente tenha pensado no sabor que o seu sangue teria, mas porque possuir um prazer momentâneo quando sua companhia é tão… É uma das melhores que existe.  Mesmo assim, no fim, acabei por ponderar sobre as coisas que me disse. — Ayan prosseguiu, tendo o cuidado de moldar as palavras da forma mais suave possível, tal qual o canto de uma ave rara. — E para meu ódio, e é claro, absoluta consternação, cheguei a conclusão de que você está certa. Sempre esteve.

   Floreen fechou os olhos, se afastando da realidade. Naquele instante, só queria desaparecer por completo. Ela conheceu Ayan Doria perto daquele mesmo lugar onde agora estavam. Ele lhe flagrou tentando aprender a dançar na floresta, na época onde ela ainda desejava participar de bailes do jeito como os outros faziam. Floreen não tinha ideia de quem ele era, na verdade, achou que fosse um humano viajante. Nunca havia visto tal criatura na vida, e sua mente simples não compreendia o perigo eminente que lhe rondava. Foi Ayan quem fez amizade com ela, primeiro pareceu ficar extremamente curioso com o fato de Floreen se parecer com uma planta ambulante, e depois, Ayan se distraiu completamente com a forma como ela se diferenciava de tudo que ele conhecia. 

      Não foi a beleza traiçoeiramente angelical dele que a cativou, Ayan era gentil, engraçado e absolutamente inteligente. Floreen sentia uma verdadeira adoração todas as vezes em que ele lhe contava coisas das quais a existência ela jamais conhecera. Os outros viajantes que passavam pela vila Blora não eram tão falantes e dispostos a responder suas perguntas, as quais ela mesma considerava bastante idiotas.  Ele lhe despertava mais do que a natureza comum dela lhe concebia. 

Nem sempre uma fada.Where stories live. Discover now