Sorvete

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– Oi eu sou o Danilo, estou aqui para falar do meu cabelo, hoje em dia ele está grande, faço tranças e gosto de por miçangas coloridas, mas quando era menor minha mãe sempre raspava. –  olhando para tela do celular conta sobre o modo que lida com seus fios – Era melhor ser zoado na escola por estar careca, do que ser chamado de cabelo de bombril e minha mãe sabia disso. – na  pausa do seu relato seus olhos negros se distanciam encarando o nada, talvez perdidos em memórias dolorosas – Agora já sei cuidar do meu crespo, aceito do jeito que ele é, me aceito do jeito que sou. Sou negro, sou lindo.

Encerra seu pequeno discurso com a mesma frase de Dara, me dando a certeza que sim ele viu o vídeo que fizemos, nós batemos palmas para sua coragem, satisfeita Júlia afirma que vai editar e depois públicar para aumentar a visibilidade do projeto.

– Chega de papo gente, bora comer – animado Felipe convida, e prontamente se serve.

Carla e Manu repentem o gesto, um pouco mais afastadas, as duas riem entre si, fico feliz de ver que mesmo retraídas vieram para essa roda de conversa. Junto com o Danilo, elas são as primeiras participantes do Minha beleza.

– Vai lá falar com ele – Gabriel sussurra de repente me fazendo tremer de susto, chegou pelas minhas costas.

– Falar o que? – questiono tentada a ir

– Ah sei lá, como está lindo hoje com essa bermuda de time. Será que vai viajar? –  o garoto não esconde a malícia

– Você não está ajudando Biel –  Júlia soca o ombro do garoto de leve, ignorando o seu  protesto exagerado de dor, continua – Danilo joga capoeira, é algo da cultura negra, pede para ele explicar sobre isso no próximo encontro.

Observo Danilo admirada com o fervor de suas palavras, ainda que  alguns minutos antes estivesse discutindo que não ia falar nada estou do seu lado  ouvindo sua animação em expor seus conhecimentos da luta negra. Com paixão o garoto emerge no assunto contando não uma história de escravos, e sim de um povo escravizado que resistiu, de todos os modos sempre buscou a liberdade com coragem e esperança.

– Foi mal, acho que estou falando demais – para de repente com um sorriso sem jeito.

– Não, gosto de te ouvir, diz com tanta propriedade e empolgação que é contagiante. Na próxima reunião vai prender toda atenção. – incentivo-o

– Valeu, mas não vai ser melhor que você, mandou bem hoje, fiquei impressionado de te ver, é tão inteligente e bonita. – me elogia.

– Você que é lindo – as palavras fogem da minha boca sem que consiga segurar, constrangida me pergunto se pode ver que cada pedaço do meu corpo fica agitado quando está perto, será que percebe o quanto minha mente fica confusa.

Será que ele sente o mesmo?

– Nós somos lindos, negros e lindos, essa é a frase do Projeto – me corrijo rápida.

– Ma, quer ir lá em casa, o Biel e a Ju também vão – Felipe surge animado, concordo instantâneamente com o convite, querendo sair logo, porém meu nervosismo continua já que o convite se estende também a Danilo.

Os minutos passam rápidos com a gente rindo e conversando pelas ruas, e apesar de cansada, a caminhada até a casa do meu amigo não parece tão longa. Ao passarmos pela garagem o estranho silêncio do lugar vazio me faz fitar para Felipe, a tristeza é evidente nos seus olhos, imagino o quanto deve doer passar todo o dia aqui e não ter Lobo pulando, latindo, fazendo festa, me aproximo dele e seguro sua mão.

O clima fica mais leve dentro da casa, sentado na sala seu Vicente nos cumprimenta sorrindo, Felipe e Biel vão para cozinha procurar o que comer, enquanto Danilo, Ju e eu conversamos com o senhor. O idoso está bastante disposto hoje e logo a gente começa a aprender jogar dominó com ele, é claro que seu Vicente sabe contar as peças e acaba ganhando todas as vezes.

Delírios de Marcela (Pausada) Where stories live. Discover now