03 - Romance V ou Da Destruição de Ouro Podre

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Dorme, meu menino, dorme,
que o mundo vai se acabar.
Vieram cavalos de fogo:
são do Conde de Assumar.
Pelo Arraial de Ouro Podre,
começa o incêndio a lavrar.

O Conde jurou no Carmo
não fazer mal a ninguém.
(Vede agora pelo morro
que palavra o Conde tem!
Casas, muros, gente aflita
no fogo rolando vêm!)

D. Pedro, de uma varanda,
viu desfazer-se o arraial.
Grande vilania, Conde,
cometes, para teu mal.
Mas o que aguenta as coroas
é sempre a espada brutal.

Riqueza grande da terra,
quantos por ti morrerão!
(Vede as sombras dos soldados
entre pólvora e alcatrão!
Valha-nos Santa Ifigênia!
– E isto é ser povo cristão!)

Dorme, meu menino, dorme...
Dorme e não queiras sonhar.
Morreu Felipe dos Santos
e, por castigo exemplar,
depois de morto na forca,
mandaram-no esquartejar!

Cavalos a que o prenderam,
estremeciam de dó,
por arrastarem seu corpo
ensanguentado, no pó.
Há multidões para os vivos:
porém quem morre vai só.

Dentro do tempo há mais tempo,
e, na roca da ambição,
vai-se preparando a teia
dos castigos que virão:
há mais forcas, mais suplícios
para os netos da traição.

Embaixo e em cima da terra,
o ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo:
quem é bom, mandam matar.

          Dorme, meu menino, dorme...
          Fogo vai, fumaça vem...
          Um vento de cinzas negras
          levou tudo para além...
          Dizem que o Conde se ria!
          Mas, quem ri, chora também.

Quando um dia fores grande,
e passares por ali,
dirás: "Morro da Queimada,
como foste, nunca vi:
mas, só de te ver agora,
ponho-me a chorar por ti:

por tuas casas caídas,
pelos teus negros quintais,
pelos corações queimados
em labaredas fatais,
– por essa cobiça de ouro
que ardeu nas minas gerais".

Foi numa noite medonha,
numa noite sem perdão.
Dissera o Conde: "Estais livres".
E deu ordem de prisão.
Isso, Dom Pedro de Almeida,
é o que faz qualquer vilão.

          Dorme, meu menino, dorme...
          Que fumo subiu pelo ar!
          As ruas se misturaram,
          tudo perdeu seu lugar.
          Quem vos deu poder tamanho,
          Senhor Conde de Assumar?

          "Jurisdição para tanto
          não tinha, Senhor, bem sei..."

          (Vede os pequenos tiranos
          que mandam mais do que o Rei!
          Onde a fonte do ouro corre,
          apodrece a flor da Lei!)

Dorme, meu menino, dorme,
– que Deus te ensine a lição
dos que sofrem neste mundo
violência e perseguição.
Morreu Felipe dos Santos:
outros, porém, nascerão.

          Não há Conde, não há forca,
          não há coroa real
          mais seguros que estas casas,
          que estas pedras do arraial,
          deste Arraial do Ouro Podre
          que foi de Mestre Pascoal.

Antologia Poética - Cecília MeirelesWhere stories live. Discover now