Capítulo 19

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O baile anual de Lady Mottram foi um sucesso, como sempre, mas os observadores da sociedade não deixaram de notar que lorde e Lady
Bridgerton não apareceram. Lady Mottram insiste que eles prometeram comparecer, e esta autora só pode imaginar o que manteve os recém-casados
em casa...

CRÔNICAS DA SOCIEDADE DE LADY WHISTLEDOWN, 13 DE JUNHO DE 1814.

Muito mais tarde naquela noite, Anthony estava deitado de lado na cama, abraçado à esposa, que aconchegara as costas em seu peito e, no momento, dormia um sono profundo.
O que era bom, percebeu ele, porque começara a chover.
Tentou colocar a coberta em cima da orelha descoberta de Kate, para que ela não ouvisse os pingos batendo nas janelas, mas ela era tão inquieta dormindo quanto acordada, portanto ele não conseguiu puxar a colcha muito acima de seu
pescoço antes que ela a afastasse.
Anthony ainda não tinha como saber se haveria raios e trovões, mas a chuva aumentara e o vento se intensificara a ponto de chacoalhar os galhos de árvores contra a lateral da casa.
Kate estava ficando um pouco mais agitada a seu lado, e ele começou a fazer sons tranquilizadores enquanto alisava seus cabelos. A tempestade não a despertara, mas certamente invadira seu sono. Ela começou a resmungar dormindo e se remexeu até ficar toda encolhida de frente para ele.

– O que aconteceu para você detestar a chuva? – murmurou ele, colocando um cacho dos cabelos dela atrás da orelha.

Mas ele não a julgava por seus medos – conhecia muito bem a frustração de temores e premonições infundados. A certeza da própria morte iminente, por exemplo, assombrava-o desde o momento em que segurara a mão rígida do pai e a pousara com delicadeza em seu peito sem vida.
Não era algo que conseguisse explicar ou ao menos entender. Ele simplesmente sabia.
No entanto, nunca temera a morte. Não de verdade. A consciência de sua existência tornara-se uma parte tão presente da própria vida que ele apenas a aceitava, assim como outros homens aceitavam outras verdades que constituíam
o ciclo da vida. A primavera sucedia o inverno, e o verão sucedia a ambos. Para ele, era a mesma coisa com a morte.

Até agora. Estivera tentando negar, tentando tirar aquela ideia insistente da mente, contudo a morte enfim começara a mostrar seu rosto assustador.
Seu casamento com Kate dera um sentido diferente à sua vida, por mais que ele
procurasse se convencer de que poderia limitar sua relação apenas à amizade e ao sexo.
Gostava dela. Até demais. Desejava sua companhia quando não estavam juntos e sonhava com ela à noite, mesmo com ela nos braços.
Ainda não chamaria isso de amor, porém era igualmente terrível.
E, não importava o nome do sentimento que ardia entre eles, Anthony não queria que tivesse um fim.

O que era, claro, a mais cruel das ironias.
Fechou os olhos e deu um suspiro cansado e nervoso, perguntando-se que diabo faria com o problema deitado a seu lado na cama. Mas, mesmo de olhos fechados, viu o lampejo do relâmpago que iluminou a noite, transformando o
interior escuro de suas pálpebras num vívido vermelho-alaranjado.
Quando abriu os olhos, percebeu que haviam deixado as cortinas entreabertas ao irem para a cama mais cedo. Ele teria que fechá-las para impedir que os relâmpagos iluminassem o cômodo.
Entretanto, ao mudar de posição e tentar sair de baixo das cobertas, Kate agarrou seu braço com força.

– Shhhh, calma, está tudo bem – murmurou ele. – Só vou fechar as cortinas.

Ela não o soltou, e o lamento que escapou de seus lábios quando um estrondo de trovão sacudiu a noite quase partiu o coração dele.
O luar prateado entrou pela janela apenas o suficiente para iluminar as linhas tensas, cansadas do rosto de Kate. Anthony se certificou de que ela ainda dormia, então se soltou de seu braço e se levantou. Após fechar as cortinas, suspeitou que os clarões ainda entrariam no quarto, por isso acendeu uma vela solitária e colocou-a sobre a mesinha de cabeceira. A luz não era forte o bastante para acordá-la – ao menos, esperava que não –, mas evitava a escuridão completa.
E não havia nada tão assustador quanto um relâmpago cortando a escuridão completa.
Deitou-se de novo na cama e observou Kate. Ela não tinha acordado, mas seu sono não era tranquilo. Enrodilhara-se em posição semifetal e respirava com dificuldade. Os relâmpagos não pareciam incomodá-la muito, porém, sempre
que um trovão sacudia o quarto, ela se encolhia.

Ele pegou sua mão, acariciou-lhe o cabelo e, durante vários minutos, ficou apenas deitado a seu lado, tentando acalmá-la enquanto ela dormia. Mas a tempestade se tornava cada vez mais forte, com trovões e relâmpagos praticamente ininterruptos. Kate ficava mais inquieta a cada segundo e então,
quando um estrondo explodiu no ar, ela arregalou os olhos e seu rosto transformou-se numa máscara de terror.

– Kate? – murmurou Anthony.

Ela sentou-se com as costas muito eretas, apoiada na sólida cabeceira da cama, e ficou paralisada. Era a própria imagem do pavor. Seus olhos estavam abertos e mal piscavam, e, embora ela não fizesse nenhum movimento com a cabeça, eles giravam de um lado para o outro nas órbitas, examinando todo o quarto mas sem
ver coisa alguma.

– Ah, Kate... – sussurrou ele.

Aquilo era muito pior do que o que ela passara naquela noite na biblioteca em Aubrey Hall. E ele pôde sentir a força daquela dor penetrando em seu coração.
Ninguém deveria sentir um terror como aquele. Sobretudo sua esposa.
Movendo-se bem devagar para não assustá-la, ele sentou-se a seu lado e pôs um braço sobre seus ombros com cuidado. Ela tremia, porém não o repeliu.

– Será que você vai se lembrar disso amanhã? – murmurou ele.

Ela não respondeu, mas ele também não esperava que o fizesse.

– Calma, calma – disse com delicadeza, tentando lembrar-se das palavras sem sentido que a mãe usava sempre que um dos filhos ficava agitado. – Está tudo bem agora. Você vai ficar bem.

Os tremores pareceram diminuir um pouco, mas ela ainda estava nitidamente perturbada, e quando o estrondo seguinte sacudiu o quarto, se encolheu toda e enterrou o rosto no pescoço dele.

– Não! – gemeu ela. – Não! Não!

– Kate?

Anthony piscou várias vezes e fixou os olhos nela. Kate parecia diferente – não estava acordada, mas parecia mais lúcida, se é que isso era possível.

– Não! Não!

E parecia muito...

– Não, não, não vá!

... jovem.

– Kate?

Ele a abraçou mais forte, sem saber o que fazer em seguida. Será que deveria acordá-la? Embora seus olhos estivessem abertos, era claro que ela estava
dormindo e sonhando. Parte dele queria livrá-la do pesadelo, mas, quando acordasse, ela ainda estaria no mesmo lugar: na cama, no meio de uma terrível tempestade com raios e trovões. Será que se sentiria melhor?
Ou ele deveria deixá-la dormir? Talvez, se ela continuasse presa ao sonho, Anthony pudesse ter alguma ideia do que causara seu terror.

– Kate? – murmurou ele, como se ela mesma pudesse lhe indicar como proceder.

– Não – resmungou ela, cada vez mais agitada. – Nãããão!

Anthony comprimiu os lábios contra sua têmpora, tentando acalmá-la com sua presença.

– Não, por favor... – Ela começou a soluçar, sacudida por grandes golfadas de ar enquanto suas lágrimas molhavam o ombro dele. – Não, ah, não... Mamãe!

Anthony ficou paralisado. Ele sabia que Kate sempre se referia à madrasta como Mary. Será que falava da mãe verdadeira, a mulher que lhe dera a vida e depois morrera, tantos anos antes?
Enquanto ele refletia sobre a questão, todo o corpo de Kate ficou rígido e ela deu um gritinho agudo.

O grito de uma menina muito pequena.

O Visconde que me Amava ( Livro 2 )Onde histórias criam vida. Descubra agora