A chuva que caía, fina e insistente, fez Ricardo ir devagar no caminho até a clínica. A manhã ao lado de Laura havia sido perturbadora. Exaustiva. Vazia e cheia de mágoas. Como as coisas chegaram a esse ponto?
Quando estacionou em frente à clínica viu alguns de seus pacientes jogando cartas na área comum. Elisa estava sentada lendo um livro, alheia a tudo.
O assunto na São Lucas não era outro além do que Ricardo chamou de "incidente". Alguns respingos de sangue passaram desapercebidos pela equipe de higienização, o que o impedia de fingir por muito tempo de que aquilo se tratava de um simples "incidente".
Estava vergonhosamente atrasado. Foi direto à sala na qual teria a tradicional reunião interprofissional. Um nome pomposo que o obrigava a suportar pessoas como Carlos, o psicólogo. Era incrível como Carlos estava, permanentemente, fora da realidade.
Jovem, tinha o cabelo liso, até os ombros, com um corte hollywoodiano. As marcas do carro, tênis, celular e perfume mostravam que ele passava mais tempo se preocupando em parecer feliz e bem sucedido do que sendo, de fato, feliz e bem sucedido. Talvez tivesse a mesma idade que Ricardo, mas, como psicólogo, tinha um currículo mais atraente. Passou 2 anos na Europa em cursos de especialização e havia trabalhado, por conta disso, em uma das mais conceituadas clínicas do mundo.
Mesmo assim, Ricardo conquistou uma autoridade maior naquele grupo. Era, visivelmente, o mais bem respeitado e o mais bem quisto entre os colegas e pacientes. Quando ria, gargalhava. Se estivesse triste, não deixava isso contaminar o mundo. Quando sua voz doce e forte invadia qualquer ambiente, ele era ouvido.
Já Carlos era um imbecil. Um imbecil com dinheiro. Confundia obrigação realizada com prova de competência, pontualidade com sacrifício e organização com dignidade. Elogiava as pessoas com a determinação de quem quer formar um exército a seu favor, caso apareça alguma causa pela qual lutar. Ah, soubesse ele que o que motiva as pessoas não são elogios, mas sim, o sentido que elas encontram naquilo que fazem, tudo seria mais fácil. Ricardo sabia disso e não entregaria essa obviedade de mão beijada. Não para Carlos.
Da reunião também participaria duas psiquiatras, Cláudia e Marina, ambas extraídas da elite paulistana. Beirando os 50 anos eram adeptas métodos pouco eficazes, na opinião de Ricardo, de tratar a dor física e da alma de seus pacientes. Entravam, facilmente, na classe de pessoas que odeiam ciclovias e qualquer investimento que tire o pseudo glamour do lugar onde vivem. Eram repugnantes.
Já Cristiane, a"nutri", vivia sorrindo. De origem italiana, tinha as bochechas vermelhas contrastando com os olhos claros que escondiam tristeza. Era casada desde os 17 anos e, aos 34, acalentava sonhos que o matrimônio podou, como viajar sozinha para Londres ou poder vestir pijamas de algodão ao invés de acompanhar o marido nas reuniões semanais de uma importante organização.
Ricardo a achava simpática. Ela e Simone, chefe da equipe de enfermagem. Devoradora de literatura americana e inglesa, carregava em suas falas citação de Anne Rice e Edgar Allan Poe. Tinha cabelo muito preto, com uma mecha branca ao longo do comprimento.
- Queríamos um relato seu, doutor, sobre o que aconteceu ontem. Foi muito sério e bastante...
-... Eu sei o quão sério foi, o que não parece ser o caso de vocês, incluindo você, Carlos! - Sem se dar conta, Ricardo mostrou sua sombra - O circo armado na sala foi algo fora de qualquer protocolo.
- Não, o senhor não estava aqui para saber o que estava acontecendo antes da sua chegada. Foi o horror! Começou quando...
-... Eu e qualquer pessoa que ler a evolução do prontuário sabe como começou, Simone. A grande questão é o que foi feito e de que forma. Primeiro, já falamos sobre estrutura de vidro em clínica psiquiátrica. Segundo que...
- Quando você vai admitir que houve erro na administração dos medicamentos, Ricardo? - Carlos colocou sua arrogância sobre a mesa com uma autoridade que não possuía, nem de fato, nem de direito.
- Quando você voltar para o faculdade e ser reconhecido como meu colega de medicina, Carlos! Não estou me eximindo da culpa, apenas mostrando que, se todos seguirmos o protocolo, as chances de tragédia como essa acontecer é zero. Entendem? ZERO.
Ricardo não costumava ser agressivo, mas, num dia como aquele, enfrentar Carlos, daquela forma, seria um fator contributivo para descarregar toda a desgraça que arrastava como correntes presas aos pés desde a noite anterior.
Epic win!
- Olha, Ricardo, o paciente é seu, mas podemos te ajudar se quiser. Temos percebido que, ultimamente, você... como vamos dizer... pode estar passando por...
A voz de Marina foi desaparecendo a medida que Ricardo distanciava sua mente daquela sala. Sua concentração foi fisgada pela cena que via pela janela localizada a sua frente: Elisa, sentada, lendo um livro.
As vezes, não nos apegamos a alguém por medo de tê-la perto porém, longe. Mal comparando, é como quando deixamos o celular cair no vão entre a parede e a cama. Ele está perto, mas, ao mesmo tempo, quase inacessível. Nos esticamos como contorcionistas, com os dedos abertos e esticados para alcançar e, quando achamos que o temos, tudo o que fazemos é empurrá-lo para mais longe. O esforço é enorme. E o celular está lá, indiferente a nossa respiração ofegante, a dor de ter que encaixar o braço em um lugar no qual, definitivamente, não é o seu lugar.
Pessoas não são celulares mas, caso se afastem por qualquer motivo, o esforço para recuperá-las é humilhante, desumano e, graças ao livre arbítrio, pode ser em vão. Perdemos tempo e energia pensando em como sermos perfeitos para alguém, imperfeito, nos aceitar.
Queremos ser bonitos, irresistíveis. Mudar o cabelo, os acessórios, emagrecer, engordar, ler livros que jamais leríamos, ouvir canções que nunca ouviríamos e nos cercar de um mundo que pertence a outra pessoa apenas para tê-la por perto. Sermos dignos de ter sua atenção pelo maior tempo possível. Sermos humanos perfeitos... Ah, Elisa, por que quero tanto sua inacessível atenção? Por que preciso disso? Logo eu, que nunca precisei de nada, me vejo tentando me esticar para te alcançar, com um medo que me consome de te afastar ainda mais...
- OK, Marina - disse Ricardo retomando as rédeas da reunião - podemos discutir isso de uma maneira mais profissional. Ontem mesmo revi os medicamentos do Jorge. O prontuário está aqui. Podes analisar e depois conversamos.
Marina pegou a pasta e passou, de relance, seus grandes olhos castanhos, marcados por sessões dolorosas de maquiagem definitiva.
- Aceito sua ajuda, mas, agora, preciso atender meus pacientes. Já sugeri a troca do horário da reunião. Caso continue assim, terei não mais que 15 minutos com vocês.
No meio de um sorriso carregado de ironia, Ricardo juntou suas coisas e saiu em direção à sala de atendimento. Por algum motivo se sentia mais leve enquanto atravessava o longo corredor de paredes claras. Estava feliz.
Cumprimentou a técnica de enfermagem parada na porta com um inusitado beijo na bochecha. Em seguida, solicitou que chamasse Elisa. Antes que ela saísse com a missão, percebeu um envelope junto com o prontuário.
- O que é esse envelope?
- Não sei. Alguma das meninas deve ter o colocado no turno da noite. Não faço ideia do que seja, doutor.
A letra de Elisa era linda. Uma caligrafia antiga, perfeita. Carinhosa.
- Devo chamá-la?
- Não, ainda não.
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