"uma estrela cadente"
Mabel se sentia incrivelmente entediada durante o isolamento. A falta de atividades a incomodava de uma forma inesperada. Permanecer dentro de casa parecia ser a situação mais desafiadora, limitada a olhar para o teto e contar manchas de umidade. Pela primeira vez, o silêncio estava começando a afetá-la, o que era surpreendente, levando em consideração o quão pouco ela saía de casa.
Parecia que quando algo era proibido, o desejo por fazê-lo aumentava ainda mais.
Em circunstâncias habituais, a ausência de movimento na casa e o silêncio não a incomodariam como ultimamente. Mabel apreciava estar sozinha, desfrutava da calma do lar e da tranquilidade de não ter a residência cheia de pessoas.
No entanto, independente de sua natureza antissocial, Mabel sentia a necessidade de interagir com outras pessoas. Seja para discutir com o padeiro da mercearia local, seja para zombar das fofoqueiras idosas do seu prédio.
Apesar de sentir-se irritada pela solidão, foi a obsessão por limpeza que a dominou. O receio da contaminação perturbou seus pensamentos, levando-a a agir de forma exagerada, como substituir o purificador de ar por álcool 70% e se render a compras pela internet sem remorso. Não seria estranho se alguém comentasse que a residência exalava um cheiro de hospital. Mesmo residindo em um edifício lotado de locatários, a privacidade de Mabel era preservada. Ela ocupava o apartamento do último pavimento, a cinco lances de escadas de distância. O imóvel vizinho estava desocupado e os dois em frente ao seu eram separados por uma escadaria. Além disso, os moradores eram idosos e raramente saíam de casa, uma vez que seus filhos proibiam as visitas entre os andares.
Ela duvidava que aquilo desse certo, refletiu. Seu Carlos tinha desaparecido naquela manhã para participar de uma "reunião informal" no bar em frente ao edifício.
Ela detestava aquele isolamento social com todas as suas forças. O emprego adicional que tinha como cabeleireira e maquiadora foi cancelado, ensaios fotográficos agendados há muito tempo foram adiados. O dinheiro que esperava receber, fundamental para sua subsistência, foi perdido e seus planos de finalmente tirar férias foram arruinados.
Ugh. O universo apenas se opôs a ela.
O que salvou Mabel da fome e de um possível lar debaixo da ponte foi seu planejamento meticuloso em relação ao dinheiro e trabalho gráfico. Mesmo não tendo uma formação adequada, Mabel se orgulhava da sua postura profissional. Todas as suas habilidades foram adquiridas por conta própria, com muita determinação, teimosia e superando obstáculos. Ela não gostava de depender de ninguém e sempre que precisava aprender algo, ela se dedicava e ia atrás do conhecimento.
A realidade é que Mabel sofria de um tipo suave de fobia social. Ela não interagia muito com os outros e nem se esforçava para estar próxima deles. Nunca se sentiu à vontade em meio às multidões. A entristecia a maneira como era difícil se encaixar, de se manter em um assunto, quando se alegrava e ninguém se importava e sua voz diminuía e era relegada a desaparecer no fundo da sala como se nunca tivesse estado ali.
Por essa razão, os livros se tornaram sua principal fonte de conforto. Ela encontrou refúgio neles. Através da leitura, ela conheceu indivíduos que a compreendiam verdadeiramente, que enxergavam sua essência e que apreciavam sua companhia de forma autêntica. E, para manter estas mesmas relações instáveis, ela contava com seu leal companheiro, o computador. Com ele, ela poderia explorar o mundo sem nem precisar sair do lugar.
Foi ali que tudo se desenrolou. Onde laborou, revisou, leu e redigiu. Mabel desconfiava de que não seria tão equilibrada se ele não existisse.
Mesmo que o computador ocupasse um espaço significativo em seu coração, foram os livros que dominaram sua alma. Sua residência se transformou em uma verdadeira biblioteca. Eles preencheram o segundo cômodo do apartamento e se espalharam por todos os cantos em estantes e caixas ao pé dos móveis.
No entanto, no dia de hoje, teve a sensação de que seus livros decidiram ganhar vida e se multiplicar pela residência sem autorização. A prateleira onde os guardava estava desorganizada, e ela se viu no centro da sala, radiante, abrindo espaço para os novos livros que acabara de adquirir.
A série de livros "Harry Potter".
Admissão: Mabel possuía no mínimo três variantes anteriores. Contudo, era impossível resistir e não adquirir a versão mais recente. Representava a experiência mais deslumbrante de toda a sua existência. Chegou em uma bela embalagem, completamente encadernada, com a escrita no idioma original, apresentando um dos designs mais belos já vistos por seus olhos.
Mas, indiferente da felicidade para com o mimo dado a si mesma, Mabel decidiu higienizar os livros minuciosamente. Por precaução.
E, obviamente, acabou perdendo o foco em um momento e mergulhou na leitura com entusiasmo, apesar de já ter realizado essa atividade inúmeras vezes.
Desarrumada, a mulher se sentou na cadeira ao lado da janela e leu com um olhar de alegria triste a parte em que Harry observa seus pais através do espelho de Ojesed.
Era uma das partes que mais a cativavam. Na realidade, os momentos em que Harry estava em sofrimento eram os que mais apreciava. Foram essas passagens que a tocaram profundamente. Talvez por ter se identificado ao não ter seus próprios pais e se ver refletida no jovem ingênuo que era Harry, ou talvez por ser uma masoquista que apreciava a dor. Quem sabe.
Harry Potter dilacerou partes equivalentes do seu coração, causando nela um misto de amor e ódio. Ela se encantou com os personagens por suas lutas envolventes, conseguindo se identificar facilmente com eles. Ao mesmo tempo, sentiu aversão por cada aspecto que os tornava inesquecíveis e fundamentais em sua jornada rumo à vida adulta.
Harry Potter marcou profundamente a vida dela. Desde a infância até a fase adulta, ela nunca deixou de se encantar com as histórias do mundo mágico criado por J.K. Rowling.
E naquele dia era seu aniversário. Trocando de um livro para outro, relendo os trechos que mais gostava, ela expressava risos e lágrimas, tal como já havia feito em inúmeras ocasiões anteriores. Passou os dedos carinhosamente pelas páginas amareladas e sentiu o aroma do papel fresco. Aconchegou-se ainda mais na poltrona, com o livro aberto sobre o peito, contemplando a noite estrelada e deslumbrante, mesmo diante da situação atual da pandemia.
Uma lembrança surgiu em sua mente, aquela citação de Dumbledore sobre como é importante sentir empatia pelos vivos, pois são eles que enfrentam a dor da ausência e da solidão. Diante do cenário atual, com tantas perdas e corações partidos, Mabel começou a compreender a profundidade dessas palavras.
Os falecidos permaneceriam descansando eternamente. Partiram e não retornariam. Enquanto isso, os sobreviventes que precisavam seguir em frente continuaram ali, batalhando contra adversidades invisíveis, levando uma existência incerta, sem ter certeza do que o futuro reservava.
Mabel respirou fundo.
— Seria menos complicado existir em um universo de fantasia — murmurou em seus pensamentos. — Mais prático enfrentar um oponente tangível do que um que permanece invisível aos olhos.
Quem sabe fazer parte de uma trama que adorava fosse mais interessante do que levar uma existência solitária longe daqueles que valorizava.
Um sorriso brotou em seus lábios, os olhos piscando enquanto uma estrela cadente cortava o céu. Ela lembrou que já fazia muito tempo desde a última vez que tinha visto uma. Pensou então o quão empolgante seria poder visitar Hogwarts e imaginou que aquela estrela cadente poderia ser sua passagem para lá.
Entretanto, a razão prevaleceu em seus pensamentos e sussurrou que a estrela cadente era somente um meteorito passageiro e Hogwarts apenas uma fábula.
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notas
E temos nosso primeiro capítulo. Não via a hora de me livrar dele. É cansativo revisitar o início de uma história para se certificar que está tudo certo. Nada nunca parece bom. Essa é a 4ª versão depois de muito editar, acreditem. Olhando para os arquivos, nossa jornada se iniciou em 27 de abril de 2021. Poucos dias antes do meu próprio aniversário. Mal me lembro porque resolvi escrever este plot. Tenho quase certeza que foi depois de ler um self-insert oc que se aparelhava com Sirius que me deixou muito frustrada.
Estou muito ansiosa para ler a opinião de todos. Qualquer dúvida ou crítica, estou aberta a todos. Obrigada por lerem.
apolinne.
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𝑀𝐴𝐵𝐸𝐿 𝐸𝑀 𝐇𝐀𝐑𝐑𝐘 𝐏𝐎𝐓𝐓𝐄𝐑
FanfictionEm meio à solidão e ao isolamento de um mundo pandêmico, Mabel, uma jovem brasileira apaixonada por livros, encontra consolo nas páginas da sua saga favorita. Uma noite, ao fazer um desejo para uma estrela cadente, Mabel acorda em 1991, em Londres...