A Travessia

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Praia do Flamengo, 132. Posto 1 da União Nacional dos Estudantes, nomeado após o levante de 2031. Fazia frio no Rio de Janeiro. Até o sol havia entrado em greve na cidade maravilhosa.

"Cidade maravilhosa", Paco repetia com sarcasmo enquanto se aquecia na fogueira armada pelos estudantes. O prédio inacabado da UNE servia de proteção contra a forte chuva que caía em todo o litoral. Uma hora. Era o tempo que restava até que seu grupo se aventurasse para fora do refúgio e ganhasse o aterro do Flamengo. Um longo quilômetro ainda separava Paco do tão sonhado mar... Última chance de salvação para aqueles ainda sitiados no inferno carioca.

Os aeroportos não funcionavam mais. As estradas, todas bloqueadas – ora pelo exército, ora por traficantes. "Maldito Carlos Lacerda", exclamavam os estudantes pela milésima vez enquanto se armavam para a travessia. Segundo eles, por puro capricho, aquele tal governador de antigamente distanciara a cidade das ondas salgadas da Baía de Guanabara. Agora, tinham ainda um quilômetro de campo aberto pela frente até o bote que os esperava na praia. Um quilômetro de aterro... era tudo que os separava da salvação.

Os estudantes, já diplomados na arte de desviar de minas terrestres, ainda temiam as rajadas vindas do alto. Eram muitos os prédios alinhados em frente ao aterro. Impossível precisar o número de atiradores em cada um, ou mesmo de que facção eram. A milícia do Flamengo certamente estava lá, mas eles não atirariam em refugiados... ou atirariam?

No fundo, pouco importava. A escuridão da noite logo os encobriria, como um divino manto de proteção contra miras alheias. Fazia tempo que a iluminação da praia não dava mais o ar de sua graça. Apenas um único foco luminoso poderia atrapalhar a travessia agora: a carcaça do ônibus 167, ainda em chamas do outro lado da rua, apesar da chuva.

Os estudantes não esperariam o fogo se extinguir. Com a seriedade de adultos, inspecionavam as AR-15s doadas pela milícia popular de Botafogo. Se tudo corresse bem, em uma hora, Paco tocaria as águas do mar pela primeira vez.

Para aliviar a tensão do momento, o menino refazia na mente o percurso que fizera até então. Duas semanas de caminhada. Deixara seus pais na segurança incerta do Parque Lage, descendo com o grupo por entre os prédios da rua Humaitá até adentrarem o pesadelo da Voluntários da Pátria: seis longas horas levaram para desviar do centro militar da COBAL ("Comando balístico", segundo uma menina mais experiente do grupo).

Paco se sentira mais seguro a seu lado. Ela sabia das coisas. Segundo ela, o ponto mais perigoso depois da COBAL era o morro Dona Marta. No entanto, os tiroteios realmente pesados só vieram mais adiante, obrigando-os a pedir abrigo em um dos antigos cinemas do bairro. Para os guias, o atraso de três dias era um desastre. Para Paco, uma esperança de que talvez os projetores pudessem voltar a funcionar durante sua estadia. No passado, costumavam exibir filmes "cabeça" lá dentro – o que quer que aquilo significasse.

Em vez de filmes, porém, Paco teve de se contentar em assistir a batalha lá fora. Soldados matando traficantes, que matavam crianças, que apedrejavam milicianos, que se matavam entre si... O mesmo de sempre. Seu professor de História estava lá no meio, de metralhadora em punho.

Terminada a sessão, o grupo atravessara os últimos metros de terreno acidentado até a praia de Botafogo. Paco lembrava, com carinho, do momento em que vira o mar pela primeira vez, naquela tarde. Sempre havia morado tão longe... nos territórios para além da COBAL. Nunca imaginara que um dia o teria logo ali, ao seu alcance. Suas ondas lambendo as areias de Botafogo. Azul, como um dia havia sido a cor do céu, que agora era cinza, feito a alma das pessoas. Mas o bote de salvamento não os encontrou ali. Era próximo demais dos holofotes do Pão de Açúcar.

Uma mão tocou seu ombro, despertando-o de suas lembranças. Era o sinal. Olhando para trás, Paco reconheceu a adolescente que já se distanciava. Os dois haviam estudado na mesma turma, nos tempos em que ainda funcionavam as escolas da Zona Sul. Escrevia como ninguém. Paco não fazia ideia de que ela também sabia manejar um fuzil. Mas a moça não o havia reconhecido, compenetrada que estava em sua missão.

Deixando a menina de lado, ele rapidamente se juntou aos outros no portão, que se abria permitindo a entrada do cheiro decadente de cinzas, fogo, pólvora e sangue que infestava a cidade lá fora. Mais ansioso que apreensivo, Paco tentava forçar a vista para além do horizonte, mas ainda não era possível avistar o bote salva-vidas. Duas ruas, um parque, uma passarela e uma faixa de areia o separavam dele. Maldito Lacerda...

Os estudantes avançaram, formando uma carcaça protetora em volta do grupo. Paco mal conseguia respirar lá no meio, mas, mesmo assim, correu quando todos começaram a correr. Correu com medo de levar um tiro. Correu com medo de ser deixado para trás. Correu com a esperança de tocar as águas que um dia haviam servido de entrada para os conquistadores do passado. O mar era o fim da angústia. O mar era o fim do medo, o recomeço. E, por isso, Paco corria. Ouvia tiros ao fundo, um tanto distantes, mas o som do mar era mais forte. O cheiro do mar era mais forte. Mais forte que o cheiro da pólvora. Mais forte que o cheiro do fogo.

Os outros agora viam o bote, mas Paco só tinha olhos para o mar. Nunca sentira tamanha alegria! E o entusiasmo era tanto que sua cabeça começava a ferver. E seu entusiasmo descia quente pela nuca e ele nunca sentira nada parecido com aquela alegria que amornava suas costas contra o frio da noite. E aquela dormência deliciosa que se espalhava pelo corpo... Mas seus olhos já não viam mais o mar.


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Renata Ventura

Autora do livro "A Arma Escarlate".




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⏰ Last updated: Sep 30, 2015 ⏰

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