Encontro junto ao chafariz

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Como a igreja do Pilar só se abria ao meio-dia, depois do almoço, Lília e Dirceu foram visitá-la. Haviam marcado encontrar-se à uma hora no chafariz próximo ao Palácio dos Governadores.

O sol brilhava. O verde-esmeralda nos morros devolveu-lhe a alegria: "Sou mesmo boba por ter passado uma segunda-feira tão deprimida!" - pensou. Agora, com o sol intenso, nem conseguia imaginar que Dirceu tivesse ido a Belo Horizonte para... visitar outra garota!

Depois de atravessar a praça Tiradentes, viu que ele já a esperava junto ao chafariz. O coração bateu forte, Lília sentiu o sangue fluir-lhe ao rosto. Dirceu veio a seu encontro. Estava de calças desbotadas, camiseta vermelha, sandálias e tinha as mãos para trás.

- Oi! - deu-lhe um beijo na testa. - Sabe que esta é a antiga rua das Flores? Então, nada melhor do que a gente dar uma flor para quem se gosta - e, tirando as mãos de trás, entregou-lhe um botão de rosa vermelha. - Senti saudade sua!

Lília ficou da cor da rosa e, levada por um impulso, retribuiu o beijo no rosto.

- Também senti muita saudade de você...

De mãos dadas, eles seguiram pela antiga rua das Flores até a Casa dos Contos, o imponente casarão todo branco com janelões encimados por arcos. Atravessaram a ponte dos Contos onde, à esquerda, havia uma cruz de pedra ao lado de um cipreste comprido. Seguindo pela rua Tiradentes, desceram pela Ladeira da Saudade até à igreja do Pilar.

O majestoso santuário de duas torres tinha uma grande e alta porta de madeira estofada. O reboco branco apresentava sinais do tempo, e os recortes vermelho-amarronzados contrastavam" com o verde-cana da parte em madeira. A cúpula das torres lembrava suspiros de açúcar. Havia uma única cruz central fixa em um arabesco. Silenciosos, os sinos dormiam ao sol quente, na vigia, em suas torres.

Os dois entraram. Protegendo a porta, havia um alto anteparo de madeira. À direita, uma prateleira. Um rapaz solicitava aos turistas que a!i deixassem suas máquinas fotográficas, pois era proibido fotografar o interior da igreja.

Olhando a toda volta, Lília sentiu-se pequena como um grão de areia. Que explosão de detalhes! A nave não era grande, mas o barroco ali era uma festa de linhas, curvas, volutas, flores, capitéis, colunas, anjos e mil outros adornos. Havia três altares de cada lado. Pela esquerda, enfileiravam-se da entrada para o altar-mor os de Santo Antônio, Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora das Dores. Esta imagem tinha o rosto como de porcelana. De seus olhos escorriam lágrimas de cristal. Vestia-se de veludo roxo.

- Imagem de roca - explicou Dirceu. - Tem mãos e rosto entalhados; o corpo vestido é de madeira bruta, como um manequim. Foi feita em Portugal, no século passado.

Lília observou os entalhes de madeira do altar. Era uma revoada de anjos, flores e guirlandas recobertos por folhas de ouro, tudo sufocado por gladíolos vermelho-sangue em vasos prateados.

- Esta é a única igreja onde os anjos têm sexo - disse Dirceu, brincalhão. - Dá para você notar a diferença entre os anjos e as anjas, não dá?

Lília caiu na risada.

Do lado oposto, ficavam os altares de Nosso Senhor dos Passos (também imagem de roca), Santa Ana e o Crucificado.

- Esta foi a igreja mais importante de Ouro Preto - disse Dirceu, conduzindo-a até a nave menor, a do altar central. - Aqui, os governadores da província eram empossados.

Aquela nave era outra apoteose barroca. Toda dourada, de indescritível beleza. A base do altar-mor apresentava-se entalhada com florais em fundo cinza. Lado a lado, subiam quatro grandes colunas de jacarandá recobertas com folhas de ouro. Eram encimadas por capitéis e sobre cada um deles repousava um anjo de pé, em tamanho natural. As duas colunas internas uniam-se à altura do forro por uma guirlanda florida. Acima dela, via-se uma revoada de mais de cinqüenta anjos em fundo azul. A base sobre a qual se encontrava a imagem de Nossa Senhora do Pilar, no altar-mor, a Virgem Maria Coroada, erguia-se em lances brancos, com apliques de florões de ouro. Nas paredes laterais, Lília observou a repetição de motivos decorativos semelhantes. O teto fechava-se com uma pintura da Santa Ceia.

- Incrível! - murmurou ela, dando uma passada de olhos pelos outros painéis pintados, representando cenas bíblicas. - É para a gente passar um dia inteirinho observando cada detalhe! Tudo vai muito além da imaginação nesta igreja!

Depois de mais alguns minutos em silenciosa observação, eles atravessaram uma porta que se comunicava com um corredor. Ali, pagaram para visitar o Museu da Prata, anexo à igreja. Depois de passarem uma portinhola, prosseguiram pelo corredor ao longo do qual enfileiravam-se pinturas do século 19, feitas sobre vidro. Havia também baús, tocheiros, candelabros, suportes para Bíblia. A seguir, vinha um espaçoso salão, com várias imagens antiqüíssimas. A que mais chamou a atenção de Lília foi a de um santo gordo. Batina esvoaçante, bochechas caídas, muito feio: São Francisco de Borja.

- Quase redonda, notou? - perguntou o rapaz. - Se quer saber por quê, olhe atrás...

Lília viu uma tampa de um palmo de largura por dois de altura.

- Santo de pau oco - continuou Dirceu. - Antigamente, usavam essa imagem para contrabandear ouro. Espertinho o pessoal, não acha? Passavam a perna no fiscal... e o santo que levava a fama!

Havia outras imagens e crucifixos. Mas o que mais chamou a atenção de Lília foi uma pesadíssima mesa de madeira entalhada, em vinhático, estilo D. João V. Seriam precisos dez homens taludos para transportá-la.

Terminada a visita ali, eles desceram até ao porão - à cripta. À luz artificial, em ambiente quase de um sarcófago, viram uma grande coleção de placas ornamentais, turíbulos, caixas para os votos das eleições das irmandades, resplendores, espadas, balanças de São Miguel, coroas - tudo em pura prata. Lília também viu um missal de 1738, o Livro do Compromisso da Irmandade dos Pretos, de 1715 e, em um balcão de vidro, um Menino Jesus de marfim, sinos e mais objetos de prata. No chão, sinos de bronze, talhas de igrejas e altares demolidos. . .

Voltando ao salão anterior, subiram por uma escada de madeira ao segundo piso. Ali, Lília viu uma ceia em imagens de roca do século 18. As figuras em tamanho natural, vestidas com tecido, não tinham a graça das obras do Aleijadinho. Havia também um altar de Santo Antônio (imagem de roca), tendo, aos pés, um baú em cuja tampa estava escrito:

"Do glorioso Capitão, o Senhor Santo Antônio da Matriz de Ouro Preto, 1805".

- Eles promoveram o santo a capitão? - perguntou ela, admirada.

De resto, paramentos antigos em cetim adamascado, bordados em fios de ouro e prata, revelavam o esplendor da igreja no tempo do domínio português no Brasil.

Terminada a visita, saíram. Era como sair de um mergulho no passado para retornar à realidade.

- Quem visita um lugar desses não pode nunca se esquecer de Ouro Preto! - comentou Lília. - Maravilhoso!

- Está bem, menina, mas não precisa ficar com essa cara de museu! - brincou Dirceu. - Agora, vamos até à estação ferroviária respirar ar puro e curtir a natureza, está bem?

Lília fez que sim. Sempre segurando o botão de rosa vermelha, já meio murcha, acompanhou-o passo a passo, devagar.

A ladeira da saudadeWhere stories live. Discover now