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Eu mexia na costura do uniforme, nervosa. Depois de todos os vestidos lindos que tinha usado na casa dos Singer - e até das roupas antigas da senhorita América - os trajes de trabalho pareciam áspero demais. Sempre foi bem pesado, sempre engomados, sem folga para brincar, dançar ou sequer dar um abraço. Apenas mais uma jaula.
- Eu estava com medo de colocá-la numa situação embaraçosa.
Dava para notar que havia mais coisas que ele queria dizer. Ele costumava ser tão confiante. Esse era uma das muitas características que me atiraram nele, e também uma das nossas diferenças mais marcantes. No geral, eu achava que éramos parecidos. Dedicados quase até demais; o tipo de gente que os outros subestimam porque demoramos para organizar os pensamentos; o tipo de gente que mantém algumas partes de si escondidas nas sombras. Mas ele tinha confiança. Era determinado. Assumia riscos. Eu queria ser tão corajosa quando ele.
Tão corajosa quanto a senhorita América.
O primeiro amor dele?
Arrisquei uma espiada no rosto dele e conseguir notar sua frustração.
- Me apaixonar por você era a última coisa que eu esperava que fosse acontecer - ele disse - E eu já perdi alguém especial para mim uma vez.
Passei os olhos pelo corredor do avião. Só conseguir enxergar um pedaço do cabelo da senhorita, que o enrolava nos dedos, preocupada.
Especial para mim.
Voltei a encará-lo. Ele continuou:
- Achei que você não ia querernfixat comigo se soubesse que a última garota de quem gostei é a mesma que você veste toda manhã.
As lágrimas despontarem em meus olhos, mas lutei contra elas. Eu as tinha segurado tantas vezes nos últimos tempos. E graças a Aspen.
- Eu te contei tudo - balbuciei, ainda contendo andor. - Foi terrível dizer o quanto já estive perto da felicidade, o quanto me sentia arrasada no palácio, o quanto gostar de você arruinou minha relação com Anne e Mary.
- Elas têm tudo a ver com a gente. E ela também - acrescentei, apontando com a cabeça na direção da senhorita América. - Assim como sua família, o príncipe e o meu pai. Porque vivemos com eles, Aspen. Não dá para ter um relacionamento numa bolha. Ele não sobrevive.
Aspen piscou algumas vezes, como se minhas palavras tivessem atingindo um dos cantos mais distantes do seu coração. E então balançou a cabeça.
- Você tem razão. E é por isso que precisava saber: não importava o quanto eu tenha desejado que desse certo, aquele relacionamento não ia durar. Ele nunca viu a luz do dia.
- Nem o nosso - suspirei, me negando a olhar.
Nós dois tínhamos que assumir a responsabilidade pelo que éramos e por tudo o que havíamos construído - e pela rapidez com que isso desmoronava.
- Pensei que era melhor assim. No começo, pelo menos. Mas não quero que continue desse jeito.
Eu estava tão cansada de desculpas. Elas pareciam chover de toda parte. Você não pode se apaixonar por causa da sua vasta. Não pode ficar com sua mãe porque ela está doente. Não pode se sentir segura porque nem o palácio é suficiente para proteger você. Um motivo bobo atrás do outro, formando um muro entre mim e uma vida com qualquer tipo de alegria.
- O que eu posso fazer, Lucy? - ele implorou baixinho. - Diga o que você quer.
Virei para ele.
- A verdade.
Aspen se endireitou na cadeira como que se preparando. Eu não sabia se existia alguma pergunta que ele não tivesse medo de escutar, mas comecei com aquela que eu tinha medo de fazer:
- Você ainda a ama?
Ele começou a negar com a cabeça quase que na mesma hora, mas eu o detive:
- Não me diga o que você acha que eu quero ouvir. Não tente me proteger. Conte tudo. . .
Um guarda levantou a cabeça por cima do assento algumas fileiras atrás, o que me fez ficar em silêncio de novo, olhando para Aspen e esperando.
Ele engoliu em seco.
- Acho que parte de mim sempre vai amá-la. Não consigo me livrar do impulso de lutar por ela, de salvá-la. Não sei se é um amor romântico, mas sei que está aqui. E sei que quando o príncipe se casar com ela, o que com certeza vai acontecer, não vou aceitar bem. Porque é divulgado ver uma coisa que você queria desaparece. (Me identificando #desabafo)
Baixei a cabeça. Claro.
- Mas sei também - ele prosseguiu. -, que se ela quisesse ficar comigo de novo, eu passaria todos os dias relembrando este momento com você e me perguntando: "e se?". Levou anos para ela ter esse efeito sobre mim. Com você, foram semanas.
Sentir minhas bochechas ficarem vermelhas. Eu queria tanto acreditar que eu estava tão presa a eles quanto ele estava preso a mim.
- Ela tentaria? Ela pediria para voltar?
Na casa dele, a senhoria América tinha berrado que a relação dela com Aspen era passado. Mas se isso era verdade, por que os dois pareciam tão sensíveis ao assunto.
Ele pensou por um instante antes de responder.
- Não. Ela vai se casar com o príncipe.
Aproximei o rosto.
- Isso é escolha do príncipe, não dela. Você está pressupondo que Sua Alteza vai pedir a mão dela. Mas e se ele não pedir? Ela não ia querer você? Ela tem algum motivo para acreditar que você estará a espera?
Eu conseguia ver nos olhos que ele não queria responder. Por fim, ele acabou fazendo que sim com a cabeça.
Me afastei, enterrando o corpo no encosto do assento. Anne tinha razão: mirei muito alto.
- Lucy - Aspen suspirou. - Lucy, olhe para mim.
  Suas palavras eram carinhosas, cheias dos nossos segredos. Implorava para eu não desistir. E eu havia sentido tudo aquilo. A maneira como ele me fazia rir e a sensação dos seus dedos acariciando minhas bochechas. O tom doce e áspero de sua voz no meu ouvido, as piscadelas que ele me lançava discretamente nos corredores.
  Reuni meus últimos fragmentos de força e o encarei.
  - Por favor, não falei comigo com tanta intimidade, senhor. Não desejo de forma alguma me envolver com um homem comprometido.
  Tomei vários colegiado descompassados, lutando para me manter inteira. Virei o rosto para a janela, observando o trajeto rumo ao nosso ensolarado lar. Não queria pensar nas complicações da nossa vivência no palácio, então me concentrei no momento, no aqui e no agora. Se eu conseguisse suportar cada minuto, poderia vencer todos.
  - Lucy - ele insistiu - Prometo a você que vou dar um jeito nisso. Agora.
  Eu o ouvi levantar e arregalei os olhos quando o vi caminhar para trás em direção à senhorita. Agora? Mas, céus, o que ele poderia dizer a ela agora? Ele ia contar sobre nós? Será que ela me odiara?
  Não, ele não podia. Estive ao lado dela por meses. Cuidei dela depois das humilhações e da perda de sua amiga mais íntima. Eu tinha feito sacrifícios por ela, e ela por mim. Nenhuma garota da Elite teria pensado na possibilidade de arrastar as criadas para o abrigo reservado à família real. A senhorita América não hesitou. Eu tinha apoiado a cabeça no ombro dela na noite de sua apresentação. Ela me vestiu com suas roupas como uma irmã. Ele me defendeu.
  Meu coração palpitou com a esperança impossível: a senhorita poderia se alegrar por mim.
  Por um belo instante, fui consumida por uma ansiedade radiante. Talvez eu tivesse sofrido por nada.
  Ouvi barulho de alguém sentando. Era Aspen, uma fileira atrás de mim, do outro lado do corredor. Ele não me olhou. Ele não fez nada.
  Então ele não estava livre. Nem eu.

A Criada - Kiera CassOnde as histórias ganham vida. Descobre agora