Capítulo 39

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Assim que me viu restabelecido, as visitas de Odilon ao Hospital escassearam; as suas atividades no Liceu o impediam de estar se ausentando com tanta freqüencia, pois, afinal, o seu trabalho na preparação de novos medianeiros para a Terra era de suma importância... Precisávamos, sim, continuar lutando para que a crença na imortalidade da alma prevalecesse sobre o Materialismo e para que a Religião se libertasse de tantos dogmas que terminam por invalidá-la, porqüanto impedem que o homem se volte para o cultivo de si mesmo.

Entre mim e Odilon, a amizade que tivera início no mundo se fortalecera na Vida Espiritual e fazíamos parte de diminuto grupo de companheiros dispostos a servir à Causa do Evangelho, sob a orientação do venerável Irmão José; embora atuando em campos diferentes, estávamos e estamos sempre em contato — eu, Odilon, Paulino Garcia, Manoel Roberto, Formiga, Maria Modesto, Alexandre de Jesus, Ademar, Luiz e tantos outros que se afinizam com o nosso modo de ser.

Retomando às minhas tarefas habituais, no diálogo constante com os enfermos sob a minha responsabilidade, assim que me recuperei, o primeiro que quis ver foi Nélio, o paciente de que lhes falara anteriormente.

- Dr. Inácio — disse-me —, o que houve? Ouvi dizer que o senhor andou doente?...

— Os médicos também têm o direito de adoecer —respondi, acomodando-me numa poltrona instalada em seu quarto.

— O que o senhor teve? Comenta-se que teria voltado muito abatido de uma viagem...

Algum desgaste emocional?

— Mais ou menos, Nélio...

— Mas o senhor?...

- Por que não eu?... Todos somos suscetíveis de sofrer determinadas crises, embora, no meu caso, não tenha passado de simples mal-estar...

— Decorrente de quê?...

— Pelo que estou percebendo, invertemos os papéis, não é? Eu sou o paciente e você o médico...

— Desculpe-me, Doutor...

— Estou brincando, Nélio. A nossa conversa está fazendo bem... E você, como tem passado? Melhorou?...

— Um pouco mais tranqüilo, mas ainda não tenho controle sobre os meus pensamentos; por vezes, sinto-me como se uma máscara se me estivesse afívelada ao rosto... Desvios da mediunidade, não é, Doutor? Será que não existe um remédio para mim?...

- Os nossos cientistas continuam pesquisando e épossível que, dentro em breve, a esquizofrenia e suas manifestações estejam sob controle, mas, por enquanto, o seu tratamento mais eficaz se resume na conquista do autodomínio...

- Como, no entanto, conseguirmos ser fortes no ponto em que somos mais fracos?

- Fortalecendo a vontade, através do trabalho... Os doentes mentais que recusam a terapia ocupacional recusam o medicamento de ação mais eficiente.

Pausando por alguns instantes, prossegui, recordando-me da experiência que mal acabara de vivenciar:

— Nélio, meu irmão, se nós soubéssemos ou conhecêssemos melhor a grandeza da Vida, não estacionaríamos ao lado de dores tão insignificantes. De repente, o seu universo passa a ser o sofrimento... Limitadíssimo! Infelizmente, a imensa maioria demora na periferia de si mesma, embaraçando-se nos efeitos da causa da própria ignorância... Urge que nos superemos, que esqueçamos a dor e que procuremos servir, não importa em que condição. Todo desequilíbrio, em essência, é falta de sintonia com as Leis que nos governam; quando nos adequarmos à Vontade de Deus, nada se conflitará conosco... O remédio é um agente externo, expediente imaginário curando doenças imaginárias. Pesquisando-o, o homem aprimora a inteligência, mas, na verdade, não existe nenhum processo de cura sem base na autocura... Se não nos decidirmos a nos curar, os outros pouco poderão fazer.

Desde que Nélio se recolhera ao Hospital, era a primeira vez que ele conseguia me ouvir sem tremedeiras e repuxões psicóticos...

- Estamos em plena Espiritualidade — prossegui —deixamos o corpo de carne e as nossas experiências para trás, porém, em essência, o que se modificou para nós? Absolutamente nada. A nossa condição mental ainda é a mesma, e se o homem não muda o teor de seus pensamentos, a vida não se renova. Tudo, Nélio, mas tudo mesmo — ilusões, vaidades, ódios, rancores, prazeres, personalismos tolos —, vai ficando à margem do caminho... Se erramos, estejamos dispostos à indispensável retificação. É simples. Porque nos rebelamos, éque complicamos a própria situação.

Se fizéssemos idéia do que nos aguarda no porvir, não perderíamos tempo com tantas mazelas e questiúnculas de ordem moral; tudo isto é muito pequeno... O pior criminoso será santo, um dia. Nenhum ser que tenha saído das mãos de Deus se perderá nos caminhos da evolução.

— O senhor nunca conversara comigo assim, Doutor... Parece-me que o estar doente lhe fez bem — comentou Nélio, perspicaz.

— Se eu nunca lhe dirigi a palavra nestes termos, você também nunca me escutou tão atento... A semente e a terra se complementam, concorda? Se até o nosso extinto organismo fisico carecia de uma certa predisposição para que o medicamento químico nele atuasse com eficácia, o que diremos dos recursos terapêuticos direcionados ao espírito? Você está mais receptivo...

— Estou cansado, Doutor, de ficar trancado aqui e nada resolver... Aceitando a reencarnação; seja como for, estou sentindo que novamente no corpo as minhas chances serão maiores... Mesmo que renasça com alguma deformidade, os deficientes, antes marginalizados, hoje vêm sendo alvo de atenção redobrada e de assistência que, cada vez mais, se especializa.

- E depois, meu filho, por mais longa, o que representa uma existência fisica perante a Eternidade? O que é o corpo perecível, ante a luz da Vida Imortal? Se não desenvolvemos as faculdades do espírito, como desfrutar do que foi criado para o espírito? De que nos adianta nos sentirmos vivos no Além, se continuamos presos às conseqüências de uma vida desregrada? Para o pássaro que não pode voar, as asas não lhe passarão de inúteis apêndices...

Sem dúvida, o pouco — muito pouco — que eu vira na Dimensão Vizinha me tornara mais sensível; não sei por quanto tempo aquele estado de espírito haveria de perdurar comigo, mas o certo é que as minhas concepções haviam se ampliado... Nada afeito, desde quando encarnado, às teorias científicas, agora é que elas necessitavam de significado para mim. De fato, o essencial éo Amor! O Amor é o Conhecimento que se antecipa em quem a ele ainda não teve acesso... Só o Amor sabe o caminho para o coração!

Notando que Nélio necessitava de repousar, despedi-me e voltei para o meu gabinete, onde Manoel Roberto me esperava com alguns problemas a serem resolvidos na Instituição.

— Doutor — veio o companheiro na minha direção, com as mãos, como de praxe, repletas de papéis —, precisamos eqüacionar...

- Dê-me aqui, Manoel, essa papelada — solicitei, sabendo de antemão o destino que lhe daria.

— São reivindicações dos servidores; pedidos de alta hospitalar redigidos por alguns internos; bilhetes de médiuns se explicando; projetos de ampliação no setor de enfermagem, em que não está cabendo mais ninguém...

Puxando com o pé um cesto de lixo para mais perto da mesa — ou, vocês imaginam que cesto de lixo seja somente um privilégio de quem vive na Terra? —, embolei aquela papelada toda, que custou caber no referido porta-resíduos, e sentenciei:

— Avise ao pessoal que o velho Inácio Ferreira está de volta, mas agora muito mais prático na solução dos chamados problemas crônicos... Auxiliares e internos, reúna todos os que puderem andar no Grande Auditório, que amanhã cedo vamos ter uma conversa!...

Na Proxima DimensãoWhere stories live. Discover now