IV

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- Boa noite, signoras - soou a voz grave de barítono de um senhor alto, com uma cabeleira branca e esguio vestido um terno preto sacerdotal que surgiu de dentro da casa. A noite já havia caído e uma lua cheia iluminava a pérgula de madeira e galhos que ficava aos fundos da casa principal onde titia, Bianca e eu estávamos tomando vinho quando o padre Morello surgiu com seu semblante pouco charmoso de cardeal romano.

- Morello! - guinchou a minha atrevida tia-avó levantando-se com uma energia impressionante para seus mais de setenta anos. - Ou devo dizer...padre Morello - a velha se corrigiu com um tom travesso e eu bem pude ver o padre corando-se todo apenas ao olhar para a mulher.

- Signorina Castromanni...- o homem se engasgou ante a atormentada visão da minha pequena tia - Sinto muito pela perda de sua irmã. - o sacerdote balbuciou visivelmente perturbado como se não soubesse que, ao visitar aquela residência, encontraria fatalmente Ludovica Castromani - Signorina Fiorella - mais que apresadamente, ele tornou a atenção para mim com um tom respeitoso, desviando de momento em momento o olhar para a figura nanica que estava tão perto de si. - Todos nós apreciávamos o trabalho da sua avó, mas, aqui permita-me uma indiscrição, é a voz da senhora a minha favorita.

- Ora, signore padre, - me ouvi dizer sem emoção e com um tom rouco, baixo ante aquele elogio - grazzie, mas devo dizer que minha voz favorita se calou para sempre junto com mia nonna.

- Uma perda irreparável a da Pia - titia deu um suspiro dramático - Estamos sobrando, mio caro... - a velha lançou um olhar que, me pareceu, uma mistura de sentimentos que vinham de muitas décadas e talvez lá foram deixados.

- Certamente a signorina viverá muitos anos mais que eu - o homem esboçou um meio sorriso tímido, mas carregado de significado. - Vim numa missão. Não apenas para prestar meus sentimentos, mas para um convite a signorina Fiorella.

- Oh, então veio apenas por causa dela, Morello? - bufou a velha enciumada num revês de sua coqueterrie fazendo sacudir suas mil pulseiras tal qual uma cobra pronta ao bote. - Achei que tínhamos uma história!

- Titia - disse entre os dentes observando que o padre se punha vermelho e Bianca desviava o olhar para conter um riso, o primeiro sinal de que era um ser que tinha alguma emoção além da timidez. - Qual seria tal convite, padre?

- Estive pensando que um funeral de Pia Castromani nunca estaria completo sem uma voz cantando a Ave Maria preferida dela. - o homem olhou-me com profundidade como se pudesse alcançar minha alma com os olhos verdes tão claros como o Mediterrâneo - A única voz adequada é da senhorita Fiorella...

Em qualquer outro momento da minha vida, a sugestão de Morello me deixaria lisonjeada, mas minha alma não estava para música, minha voz não estava pronta. Na verdade, não havia voz. Estava seca e vazia como a madre de uma mulher estéril. O universo, eu achava, conspirava para me calar. Não seria um padre com jeitos de Papa que iria me pedir aquilo. Nem mesmo no funeral da minha avó, a quem, assim pensava eu, desonraria ao fazer qualquer tentativa de cantar.

- Eu não posso - interrompi o homem categoricamente com um gesto bruto para compensar a falta de voz - Sinto muito, padre Morello, mas...o senhor há de me entender, mas já não canto mais. Não tenho voz.

- Hunf! Disparate! - bravateou a intrometida tia Ludovica intervindo quando não fora consultada como estava acostumada a fazer - Ora, essa, negar um pedido a um padre! Que pecado! Que a Virgem Maria a perdoe! - e, exagerada como sempre havia de ser, fez o sinal da cruz três vezes.

- Deus e todos os santos vão entender, titia - respondi com rispidez.

- Há perdão a todos o filhos de Deus, certamente. Mas a sua voz, signorina - suspirou Morello como que encantado - traria o Paraíso na terra a cerimônia. Pense a respeito...

- A moça é teimosa como mula, mio carissimo - tia Ludovica se levantou novamente com uma expressão obstinada a chamar a atenção para si. Uma vez primeira bailarina sempre primeira bailarina. - Sei que minha voz não é a melhor da família, mas, pela minha irmãzinha querida, seria capaz até de cantar a ária da Rainha da Noite. - e, para meu desespero e de todo Olímpo da ópera, ela passou a emitir um ruído parecido com o guincho de um bizão morrendo agonizante. Claro que, na mente de titia, ela estava cantando uma das árias mais difíceis já compostas no Universo. Pobre Mozart, se estivesse vivo morreria certamente diante desta afronta!

- Pelas cordas vocais de Callas, titia! - exclamei desesperada encontrando algum resto de voz - Pare com isto! Esta bem, está bem! - me dei por vencida, uma vez que conhecia a obstinação teimosa de uma Castromani da velha geração como Ludovica - Que os céus me ajudem e que todas as sopranos me abençoem! - ergui as mãos pedindo a proteção das vozes que vieram antes de mim.

- Oh, eu sabia que você acabaria aceitando, Fiorella, cara mia! - minha tia tinha a vitória estampada no semblante - Os Céus hão de te ajudar a superar essa fase... -

- Será glorioso ouví-la ao vivo, signorina Fiorella. - o padre disse fazendo uma meia reverência - O pianista favorito de sua avó está na cidade e disse que será uma honra acompanhá-la.

- Oh, Senhor! - suspirei tremendo e me arrependendo por ter aceitado aquela sandice expondo o que havia sobrado de mim diante de uma congregação cheia de pessoas do mundo da ópera. - Tenha a bondade de pedir a este senhor que se apresente aqui na vila em dois dias. - pedi ao padre e tomei todo um gole de vinho de uma vez como se ali houvesse um bom gole de coragem - É o tempo que vou precisar para me recompor.

- Com prazer, signorina - assentiu o sacerdote com um meneio de cabeça - Irei deixá-las e voltarei a catedral. Buona nuotte! - despediu-se educadamente seguindo o caminho por onde veio.

- Oh, que homem! - gemeu baixinho a velha recebendo meu olhar e o de Bianca, que, segundo interpretei, podia jurar que aquela parenta idosa era tinha um dragão do amor adormecido. - O que foi? É um homem bonito. Sempre o foi. Mesmo quando o troquei pelo ballet já era o mais bonito de Cortona. - e suspirou nostálgica olhando pelo caminho onde o padre havia sumido e passou então a um estado contemplativo, mergulhada, certamente, em lembranças passadas. 

Primma DonnaWhere stories live. Discover now