Enrico

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A solidão, quando cultivada, vai se transformando de um estado de espírito em algo permanente, físico e vital, como um rim ou um fígado. A pessoa se apega na solidão, respira a solidão, cultua a solidão. Você já conheceu alguém que reluta tanto em deixar alguém entrar em sua vida que acaba afastando todo mundo que tenta se aproximar? Afinal de contas, se a pessoa se aproximar demais, vai ferir o seu lado solitário, e como eu disse antes, para algumas pessoas ele é vital.

Eu sou assim.

O problema é que, ainda criança, fui burro o bastante para abrir uma exceção a alguém. Hoje eu vejo que eu não deveria ter feito isso. Se eu não o tivesse defendido no orfanato, no dia em que o garoto alto e gorducho deu um soco em sua cara e o chamou de fracote chorão, talvez ele não tivesse começado a me admirar. Se ele não tivesse começado a me admirar, talvez não tivesse começado a me seguir por todos os cantos daquele lugar dos infernos, com aqueles olhos grandes e tristes implorando por um amigo. Se ele não tivesse me seguido por todos os cantos, talvez eu não tivesse começado a me afeiçoar a ele. Se eu não tivesse me afeiçoado a ele, talvez ele não tivesse se tornado como uma espécie de irmão, para mim. Se ele não tivesse se tornado uma espécie de irmão para mim, talvez eu não o tivesse seguido quando ele disse que tinha se alistado no exército. Se eu não o tivesse seguido quando ele se alistou no exército, outra pessoa estaria em meu lugar, e talvez essa pessoa conseguisse salvá-lo. Se outra pessoa conseguisse salvá-lo, ele estaria vivo e eu não estaria aqui, bêbado, amargurado, remoendo a culpa pelo fracasso que causou a morte do meu melhor amigo. E também não estaria dependendo do cachorro dele para me guiar. Afinal de contas, eu não estaria cego.

Mas eu não posso mudar o que se passou, e por isso eu devo viver o resto da minha vida entre sombras e os fantasmas do passado.

***

UM ANO ATRÁS

— Abaixem-se! — O Capitão Guaribe berrou antes de tiros serem disparados em nossa direção. Graças ao seu aviso, houve tempo suficiente para que quase todos nós abaixássemos, exceto o João, mais conhecido por soldado Carré.

— Maldição! Fui atingido! — Ele praguejou, atrás de mim. Preocupado, imediatamente me virei para observar seu ferimento e me senti aliviado ao perceber que passou de raspão em seu ombro.

— Largue a mão de ser chorão! Você já teve ferimentos muito piores. — Zombei.

— Mas está ardendo pra porra! Vou matar esses filhos da puta que me acertaram! — Nisso ele se ergue apenas o suficiente para atirar nos alvos, e a raiva o faz acertar em cheio.

— Quarteirão limpo! — Berrou o Tenente. — Muito bom, soldado Carré! Mais uns tiros desse e será promovido em breve. — Observo o brilho de orgulho nos olhos do meu amigo, e isso me deixa feliz.

— Que saco, agora teremos que ouvi-lo se gabando disso pelo resto da semana. — O Tenente Monteiro brinca.

— Se acharem ruim, posso lembrá-los disso pelo resto do mês. — Não deu tempo de protestarmos, pois fomos emboscados por vários rebeldes.

Estávamos há alguns meses na Síria, um país que está sofrendo uma guerra civil entre o governo e alguns rebeldes. Viemos com a missão de auxiliar a paz, mas os rebeldes nos enxergam como o inimigo. Não sei qual é o lado certo dessa guerra, só sei que luto para que tudo isso chegue ao fim e os civis finalmente possam ter um pouco de paz.

Sinto o metal frio contra minha nuca, mas consigo desviar e abater o inimigo. Tiros são disparados por todos os lados. Hoje os rebeldes colocaram em prática todo seu lado frio e calculista. Vimos coisas que nada poderá apagar da nossa memória.

O corpo pálido e gélido de uma menininha agarrada à sua boneca de pano me fez vomitar duas vezes seguidas.

A cada minuto eu amaldiçoo o minuto que João decidiu entrar no exército. Era para estarmos em casa, assistindo futebol e bebendo cervejas, cada um com uma garota bonita o suficiente, para nos fazer gemer de prazer só de olhá-la.

Ah, as garotas... Como eu queria poder estar com uma nesse momento.

— Você não está me ouvindo? — O grito apavorado de João me fez voltar ao presente. — Abaixa, Enrico! — Nem pensei duas vezes antes de fazer. Senti algo molhado escorrendo até minhas mãos e vi o Capitão Guaribe tentando impedir a hemorragia que estava ocorrendo em seu estômago. Dois tiros bem próximos estavam esvaziando cada milímetro de sangue de seu corpo.

Imediatamente fiz o reconhecimento de área. João estava do outro lado, com alguns rebeldes entre nós. O Tenente Monteiro estava com ele, e o Mendes estava um pouco atrás de mim. Notei que ele estava ferido na nádega esquerda. Ficamos trocando tiros por vários minutos, e quando achei que não conseguiríamos sair vivos de lá, a força tarefa aérea chega e nos dá cobertura.

Gabriel corre para auxiliar o Capitão desmaiado, enquanto eu ajudo o soldado Mendes a entrar no helicóptero. O soldado Carré ficou para trás, aguardando os feridos entrarem para depois garantir sua segurança. Se eu não estivesse auxiliando o soldado Mendes, provavelmente seria eu a aguardar todos entrarem em segurança, mas precisei subir com o Mendes, que não estava aguentando apoiar a perna esquerda no chão, pois acabava indo o preso sobre o quadril, causando dor devido ao seu ferimento.

O Tenente Gabriel Monteiro, garantiu que o Capitão Guaribe subisse no helicóptero em segurança, e então o horror daquele dia teve início. Gabriel estava sendo resgatado por um Tenente, que mais tarde descobri ser seu irmão, quando eles foram atingidos. Meu colega de tropa morreu imediatamente, e seu irmão desmaiou.

O pânico se instalou em meu peito, e saltei do helicóptero para tentar resgatar o João. Dois Segundos. Esse foi o tempo que durou minha última lembrança viva do meu irmão. Nunca vou esquecer seu olhar preocupado, e sua tentativa de ordenar que eu voltasse à minha segurança. Era como se ele soubesse que a bomba explodiria e que ele iria morrer.

A cegueira não é um castigo justo. Era para eu estar em seu lugar. Eu deveria ter deixado o Mendes se virar sozinho. Sim, deveria! Por que me resgataram? Eu queria ter ficado com ele. Queria ter morrido com ele. Não, eu queria ter morrido em seu lugar. Mas como não posso, morri junto com ele.

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Recomeçando a ViverWhere stories live. Discover now