Fargo - Cenário branco, Humor Negro

17 0 0
                                    

É já um belo fato conhecido pela humanidade, que sempre que alguém morre, devemos nos sentir tristes, de luto, com dor no coração, etc. Mas, Fargo te faz rir desta morte, e ficar triste consigo mesmo por estar rindo de tal tragédia. "Tragédia" sendo uma palavra que, ao mesmo tempo, descreve o filme perfeitamente, e não lhe faz o mínimo de justiça. Para um ótimo exemplo, basta olhar para a premissa básica: um simples vendedor de carros, Jerry, organiza um esquema para construir um estacionamento de carros, bem ordinário até agora. "E do que este esquema consiste?" podes perguntar, bem, envolve sequestrar sua esposa e pedir o dinheiro do resgate para seu sogro, dando uma pequena parcela aos sequestradores contratados, e ficando com os 750 mil dólares restantes para si mesmo, há uma piada sobre sogros aqui em algum lugar, mas me recuso à faze-la. Com esta premissa e outro diretor, o filme poderia ter sido facilmente um thriller neo-noir bem esquecível e básico, sem muito valor, do tipo que seria mencionado em uma conversa monótona com um antigo colega de escola com problemas mentais antes que ele tentasse te assaltar sexualmente (parabéns se entendeste a referência). Já que estamos por falar de tais situações absurdas e desconfortáveis, é justamente delas que Fargo cria sua identidade. Onde a própria estupidez e incompetência dos personagens da trama, acaba por metamorfosear esta tragédia esquecível, num conto sórdido e hilário. Falta-me ainda a mencionar, sobre estes personagens da trama, diversos outros que virão a aparecer conforme ele se desenrola e vai se tornando maior e mais complexa, mas vejo que é melhor experienciar o desconforto e as risadas por si só. Até por que, estaria por estragar o mistério e natureza imprevisível da trama, e é justamente nesta natureza, que o filme acaba por perder muitas pessoas. Pois, só por que existe muita comédia e tudo mais, o filme não se priva de tomar tempo para desenvolver personagens e criar uma história intrigante, como muitos acabam por fazer. O público comum pode acha-lo fraco, ou até mesmo chato, até por que, o tom realmente é diferente (isto é, fora dos filmes dos Coen), onde é difícil de entrar no humor para ele, vendo que o humor é único da forma que é. E sobre entrar no humor, acredito que todos saibamos do que falo, o humor que tu entras para assistir "Antichrist" é um humor diferente do para assistir "The Lion King" do contrário, tu és um pervertido sádico. Não tanto, eu diria, como muitos dos personagens do filme são (afinal, o que fazes em teu quarto é problema teu), e não seriam tão assim, ou até tão engraçados, se não fossem pelas atuações, muito bem feitas por se falar, foi muito interessante ver os atores falarem naquele sotaque de Minesota, onde o filme se passa, tão bem, o que óbvio adicionou muito a comédia. O mais impressionante, para mim ao menos, foram as escolhas dos atores, eu não conseguiria imaginar ninguém melhor para interpretar estes desolados personagens no meio desta nevasca que não parece ter fim. E por falar desta nevasca, o diretor de cinematografia merece um belo aplauso relutante, afinal, a composição, campo de profundidade, meta-linguagem, temperatura, tudo isto foi muito bem feito, capturando aquele frio de, perdoem a expressão, cair o pinto. Na verdade, acho que não há muita necessidade para se pedirem desculpas, afinal, se estas interessado/a neste filme, pode vir esperando muito pior. Mas, para ser completamente sincero, senti um pouco de falta de humor visual no filme, sim, este não é muito do estilo dos Coen, é mais uma coisa do Edgar Wright, mas haviam oportunidades perfeitas para serem feitas piadas visuais, mesmo que de forma sutil, mas eles se recusaram. Por exemplo, existe uma cena onde dois homens estão "copulando causalmente com duas damas que estão fazendo um empréstimo de suas anatomias femininas em troca de capital" e no primeiro momento mostra este ato, depois ocorre um "fade to black" e depois voltamos para eles deitados na cama assistindo um deste talk-shows americanos da forma mais desinteressada possível, seria muito mais engraçado, na minha opinião, termos um corte brusco, pois ele seria mais inesperado e implicaria, ainda mais, uma grande distância emocional entre os homens e estas "damas". Mesmo com o roteiro sendo brilhante e engraçadíssimo, seria bom ver piadas visuais acompanhando esta trama sobre pessoas incompetentes sendo incompetentes.

E com esta trama sobre incompetência e pessoas com problemas mentais, muitos podem olhar para Fargo como um filme, não digo burro, mas nada "High art" se me permite ser pretensioso, e é ai, que acho que muitos se equivocam. Fargo deliberadamente escapa de várias convenções da clássica estrutura da narrativa, digo como exemplo, estrutura de três atos, resolução, etc. Ao invés, o filme nos opta por mostrar uma história muito mais crua, diferente de outros filmes onde haveria cenas explicando a moral ou dando uma boa ideia do que ela é, Fargo constantemente te faz pensar que isto ira acontecer ou que vira algum tipo de redenção e resolução para estes personagens de uma forma que fará algum tipo de sentido poético, da mesma forma que outros filmes operam. Mas neste caso, vemos os eventos da forma que ocorreriam, sem "Movie magic", sem exposição ou pretensão, apenas eventos, eventos trágicos e hilários, uma história de pessoas perdidas numa gigantesca nevasca cegante e branca. Um paralelo que tornaria mais fácil de explicar, seria com meu livro favorito "Ensaio sobre a cegueira", onde, esta mesma brancura cegante, vêm da nossa falta de empatia com outros, o que também é muito visto em Fargo (não estou à implicar que um copiou o outro, ou vice-versa, apenas acredito ser um paralelo interessante). Para os familiarizados com a cultura e esteriótipos sobre os estados americanos, reconhecem que o povo de Minesota, é conhecido por sua "bondade", aquela coisa que vemos muito em cidades pequenas aqui no Brasil, sorrisos enormes, palavras de educação, todo aquele gigante e complexo contrato social que assinamos com nossa integridade. Mas aonde vou-me com este falatório? Bom, vendo que Fargo se passa em Minesota, quase todos personagens da trama, e até os pequenos papéis de uma cena, agem desta forma, com suas convenções sociais, que no final, acabam por ser isoladoras. Mostram personagens agindo com pesadas convenções sociais e, mesmo assim, não se conectando emocionalmente umas com as outras, em outras palavras, nos cegando. Acabamos por nos focar tanto na nossa própria imagem com em relação aos outros, que acabamos por não nos apegando ou nos conectando com ninguém. Um fácil exemplo, sem spoilers, é na própria premissa do filme, onde Jerry comanda sua esposa a ser sequestrada. Algo que reforça esta mensagem ainda mais, é a presença prevalente de televisores no filme, observe com cuidado o quanto eles aparecem e o quão focados e desesperados as pessoas estão em sua relação olhos-telas. Pois, na televisão, tudo é ideal, tudo é apresentado em uma imagem perfeita, as pessoas são perfeitas e tudo se vê como uma utopia inalcançável, que tentamos alcançar todos os dias. Tentamos criar esta imagem perfeita de nós mesmos, pessoas gentis, felizes, com seus motivos, e esquecemos de nos conectarmos uns com os outros. Não para dizer que os televisores são os causadores disso, não, isto é uma função inerente da espécie humana desde que conseguimos nos organizarmos em civilizações, os televisores, nada mais fazem, do que incorporar este sentimento em sua toda sua cegante pseudo-perfeição que nos distancia cada vez mais e mais uns dos outros. E acredito ser esta a razão pelo filme fugir destas convenções e clichês da narrativa, deixando os personagens, e nós deixando como ovelhas perdidas, no meio desta nevasca incessante. 

(Não, esta não vai acabar com uma piada, pois isso seria muito convencional e se tratando deste filme...)

(Espera, isso agora não foi uma piada?)

(Paradoxos de merda)


Reviews de filmesWhere stories live. Discover now