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Para todos aqueles que têm dúvidas.
Para as perguntas sem respostas.
E para as dúvidas respondidas.


Era uma cena comum e irrelevante. Apenas dois alunos no pátio da escola, matando aula. Os outros estudantes nem davam mais bola, e os professores já tinham desistido de fazer qualquer coisa a respeito, já que éramos vistos vadiando ali toda semana. Sem exceção. Anne e eu. Dois adolescentes facilmente reconhecíveis pela falta de uniforme, que dava lugar a camisetas de banda e calças jeans rasgadas. Era assim no começo e foi assim durante anos...

Eu e ela.

Sempre.

Anne esfregava uma boa quantidade de álcool nas mãos e as sacudia para secá-las, enquanto eu tentava me distrair olhando para os pombos que andavam chacoalhando suas cabecinhas. Ela passou um pouco do álcool nas minhas orelhas; os alargadores, dois pequenos brincos de 2 milímetros na haste, aguardavam no banco. O sol torrava nossas cabeças enquanto o resto da turma assistia à aula de Matemática. Estava tudo em silêncio, interrompido apenas pelos arrulhos do grupo de pombos que perambulava à procura de restos de lanche dos alunos.

A direção tinha enchido a escola com placas de "não alimente os pássaros", mas não havia nada que pudesse ser feito para impedi-los de bicar salgadinhos. Um deles esbarrou em um copo de refrigerante de uva, derrubando o líquido e manchando o chão de cimento com aquele corante roxo pavoroso que provavelmente dava câncer.

Não lembro muito bem, mas acho que estávamos em agosto. Aquela época do ano em que era bom ficar debaixo do sol nos dias frios, fazendo fotossíntese, como dizíamos. Absorvendo o máximo de calor para quando esfriasse ainda mais.

Não ventava muito, então o sol nos aquecia. Se fôssemos para a sombra, provavelmente passaríamos frio. Por isso sentamos ali, perto de uma árvore, mas não próximos o suficiente para que a copa nos roubasse o calor.

Foi uma das últimas semanas razoavelmente comuns dos meses que se seguiriam. Eu estava prestes a entrar em um mundo tomado por hormônios adolescentes, dúvidas e alcoolismo alheio. Até então, éramos apenas dois moleques. Minha única emoção era ir à praça nos fins de semanas e tentar convencer minha mãe de que ela precisava de comida para sobreviver.

— Vai doer? — perguntei.

Anne riu. Era óbvio que ia doer. Ela estava prestes a enfiar um cotonete afiado no furo da minha orelha. Ela me olhou com um sorriso sinistro enquanto cortava o bastão azul com um canivete, fazendo uma ponta que imitava um cateter. Quase me arrependi de não ter ido a um estúdio. Fiquei olhando os desenhos e as assinaturas feitos com canetas e corretivos no banco em que estávamos sentados, tentando me distrair. Incrível a quantidade de porcaria que alguém era capaz de escrever num banco de escola. Um dos alunos desenhou um pênis com os dizeres "sente aqui" ao lado. Era um pouco patético, uma piada de quinta série, mas provavelmente feita por algum garoto da mesma idade que a gente. A maturidade ia para o saco quando havia um banco a ser riscado.

Anne jogou mais álcool no canudo e nas mãos. Perguntei-me se aquela era a melhor forma de esterilizar os materiais, mas não havia muito a ser feito.

— Preparado? — ela perguntou.

— Acho que sim — respondi com a voz falhando.

Sim, eu era um covarde. Meu estômago afundava só de pensar naquele negócio sendo enfiado pelo meu pequeno furo de brinco comum.

Peguei o celular da mochila e coloquei uma música em volume baixo para tocar. Quem sabe aquilo serviria para me distrair. Eu confiava nela, a Anne. Ela sempre tinha estado ao meu lado, mesmo nos momentos mais ferrados da minha vida. Como naquela vez, três anos antes, quando meus pais se divorciaram. Ela foi até a minha casa na chuva. Chegou lá encharcada, tremendo de frio. Você é doida, eu disse. Ela não se importava. Minha mãe lhe deu uma toalha para se secar, e a Anne fez chá para nós três. Ela conseguiu transformar o pior dia da minha vida em uma das melhores noites que tive na companhia da minha mãe. Choramos juntos e dissemos tudo o que tinha para ser dito e que fora ignorado durante quatorze anos. Foi a última vez que vi meu pai.

Antes de Tudo Acabar (Degustação)Where stories live. Discover now