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Descansamos um tempo, falando bobagens, e depois ela terminou o serviço nos meus lóbulos. Retirou os canudos de cotonete e colocou os alargadores pretos. Lavei as orelhas e fiquei me encarando no espelho, tentando adivinhar se agora minha aparência estava melhor, pior ou só dando mais motivos para os outros me chamarem de emo  um insulto que eu estava longe de entender. Ninguém ofendia outra pessoa dizendo "ei, seu metaleiro" ou "você ouve pagode". Ou, sei lá, "cara, você gosta de chocolate". Onde estava o insulto? Chamarem você de algo que você gosta ou respeita seria um insulto em que mundo? Eu sentia algo parecido quando me chamavam de gay. E se eu fosse? Não era uma ofensa válida, não era motivo de vergonha. Eu ficava incomodado mesmo era quando falavam da minha família. Nunca fazia nada para provocar ninguém, e eles vinham com aquelas histórias bestas e os xingamentozinhos ridículos.

E aí a Anne olhou para mim e disse que eu estava bonito. Devo ter ficado absolutamente vermelho. Acho que não respondi nada. Só me lembro de ter ligado o som para tentar não me sentir constrangido. Isso jamais tinha acontecido. Sempre passávamos um tempo juntos, e constrangimento nunca tinha feito parte do pacote. Aparentemente, meus hormônios estavam trabalhando demais, ou era o corpo dela que vinha mudando tanto, anuviando minha cabeça. Céus, o que estava acontecendo comigo?

Anne escolheu um álbum qualquer pra tocar e deitou a cabeça em meu colo.

— Você anda muito folgada — eu disse.

Ela encolheu as pernas e se virou.

— Estou com sono — respondeu. — Não dormi a noite passada.

Ela ficou ali deitada, de olhos fechados, com enormes olheiras em volta deles. Passei a mão pelos ombros dela e foi quando vi uma enorme mancha roxa. Tirei a mão imediatamente, com meu estômago embrulhando.

— Ele ainda está te batendo? — perguntei.

Ela me olhou vagamente, apoiando a mão no hematoma.

— Claro que bate, Rafa. Sempre bateu e sempre vai bater.

Sacudi a cabeça. O que fazia um pai bater na filha do jeito que acontecia com ela? Por mais medo que eu tivesse do meu pai quando ele estava com a gente, nunca tinha apanhado dele daquele jeito, a ponto de ficar com marcas.

— Você não deveria mais deixar isso acontecer. Por que não conta pra alguém? Denuncia, sei lá.

Anne deu uma meia risada.

— Ai, Rafa, sério. Você sabe como as coisas funcionam.

Eu não estava interessado em saber como ela achava que as coisas funcionavam. No meu mundo, filhos não apanhavam dos pais, e era daquele jeito que as coisas deveriam funcionar.

— E suas tias? Já pensou em ficar na casa delas? Não que seu pai fosse se importar, caso você se mudasse.

— Minhas tias? Claro que não, prefiro apanhar a viver com elas. Já me acostumei a levar porrada de qualquer forma.

Não respondi nada. Ela dizer que tinha se acostumado com aquilo me dava náuseas. Eu não fazia ideia de como ajudar, mas esperava que aos poucos ela começasse a me ouvir mais e talvez, quem sabe, fosse embora daquela casa.

Anne tinha duas tias solteironas, gêmeas e megarreligiosas. Às vezes a gente falava dela ir pra lá, mas as tias eram o ápice do insuportável. As duas doidas soltavam comentários desagradáveis o tempo todo. Não faziam nada além de ficar em casa coçando e enchendo o saco de quem estivesse em volta.

No aniversário da Anne de quinze anos, elas ficaram aporrinhando por causa da roupa dela, dizendo que ela iria para o inferno e coisa e tal. Aí a gente pôs um som, e nem era dos mais pesados. Elas surtaram na hora e nos mandaram desligar. Na boa, elas não liam livros, não assistiam novela, nada. Tentaram até convencer a Anne a queimar a coleção de Harry Potter dela.

Antes de Tudo Acabar (Degustação)Where stories live. Discover now