Biografia

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APRESENTAÇÃO Quando Thammy Miranda me ligou, falando de seu interesse em fazer um livro sobre sua experiência de vida, a primeira coisa que me veio à mente, como num filme, foi a sucessão de mudanças físicas pelas quais ele havia passado desde que surgira na mídia como bailarina sexy, até o presente momento —na época, ainda não transexual, mas com aparência assumidamente masculina. Ainda assim, fiquei intrigada: por que uma pessoa de apenas 33 anos faria uma biografia? Somente para falar de sua própria homossexualidade? Não me pareceu assunto suficiente. O que Thammy teria em mente? Dias depois, nos encontramos num café no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, e na breve uma hora que passamos juntos, o desejo de transexualização de Thammy rapidamente se revelou o eixo central do livro. A possibilidade de acompanhar esse processo e criar uma narrativa que pudesse dar conta da grandeza e complexidade dele me pareceu fascinante. No período de um ano desde que começamos nossas entrevistas até a assinatura do contrato com a Editora BestSeller, o desejo de Thammy se tornou realidade e o processo de transexualização se tornou de fato o eixo central de sua vida. As linhas da memória de Thammy aqui reunidas convergem para o ponto expansivo e libertador que é a afirmação da sua autopercepção. Thammy sempre foi um homem, ainda que seu corpo de mulher não confirmasse a percepção que tinha de si mesmo. Atravessar o vão entre sua condição existencial e sua condição biofísica; se permitir aceitar essa autopercepção e lutar por ela no mundo, através da sua expressão pública, foram seus grandes trabalhos. Se você espera encontrar aqui um relato de tentativas de suicídio e automutilação, esqueça. Com toda a delicadeza perigosa de sua condição, Thammy jamais pensou em abandonar a vida. Jamais pensou na dor física como saída para o sofrimento. Pelo contrário, toda a sua ação foi em direção à alegria de ser e ao direito de viver plenamente sua identidade de gênero e seu prazer, sem mentiras, sem hipocrisia. Thammy não tem nenhum conflito a respeito de si mesmo, não tem dúvidas de que seja um homem. O que fez foi encontrar o nome do que vivia e seu lugar no mundo —a transexualidade. Os conflitos que viveu foram em relação ao outro, a como se posicionar diante da família, das mulheres, do trabalho e do mundo. Empenhou anos na tarefa de chegar a algumas conclusões e tão logo chegou a elas, seguiu em frente, erguendo sua bandeira. Os conflitos, caro leitor, cara leitora, posso garantir, são muito mais nossos em relação a Thammy do que de Thammy em relação a si mesmo. Ao contrário do que muitos podem imaginar, Thammy não tem interesse pessoal em polêmicas sobre sua sexualidade. Se pudesse escolher, viveria sem isso. Mas desde que viu que não teria saída, que não haveria liberdade se ele não assumisse publicamente seus processos íntimos, dada a sua visibilidade na mídia, Thammy decidiu enfrentar o assunto e influenciar a opinião pública com seus relatos pessoais. Se eles agridem alguém, não é por intenção de Thammy. É porque a dificuldade com a diferença e a insensibildade ao outro, é mais presente em algumas pessoas do que em outras. Sem falar nos que lucram com o preconceito e fazem dele uma máquina de dividendos. Mesmo que a vida de Thammy sugira certo escândalo, não se pode confundir a sua ação com a ação dos que odeiam sua condição e tentam, através da propaganda hipócrita, deformá-lo. Seu único interesse é o direito que ele, assim como todo transexual, tem de viver às claras na sociedade e ser respeitado —não especialmente respeitado, mas simplesmente respeitado, como deve ser todo ser sobre a Terra. A feitura desse livro foi iluminada por encontros com diversas pessoas do relacionamento afetivo e familiar de Thammy. E de todos eles, ouvi a mesma frase: “Não me importa o gênero. Eu amo essa pessoa do jeito que ela é!”Esse fato surpreendente revela que se este livro tem uma missão, é falar não só da transexualidade de Thammy, mas de como as pessoas que o amam superaram seus preconceitos e o apoiaram em suas decisões vitais. Talvez, se não fosse tão amado por sua família, seus amigos, suas amantes e seus fãs, Thammy tivesse chegado um dia a pensar em suicídio, pois a condição de um transexual exige muito amor para ser suportada. Mas essa também é uma tarefa de todos à sua volta —e que acaba por se reverter num bem enorme, à medida em que todos se tornam pessoas melhores só por amar e querer o bem do outro, acima de tudo. Outra missão que se pode atribuir a este livro é apontar na direção da informação. Como o assunto da transexualização é razoavelmente recente e alvo de muitos equívocos, consideramos importante colocar o leitor a par de aspectos técnicos, científicos, históricos e alguns fatos relativos a políticas públicas brasileiras sobre o assunto. Esses trechos dão uma pausa na emoção do livro, mas convidam o leitor a pensar na transexualidade de maneira mais sóbria e consistente. Optamos por contar essa história não como uma biografia —esta o próprio Thammy escreverá daqui a mais uns trinta anos —, mas como uma cartografia do seu processo de transexualização, um mapa narrativo que nos permite marcar, senão todos os pontos importantes de sua vida, aqueles pontos que construíram o trajeto de Thammy até a confirmação de sua autopercepção: desde a negação das roupas e das brincadeiras de menina na infância até a recente mamoplastia que o fez se sentir renascido. Também foram fundamentais a este livro os relatos e aquiescência dos pais de Thammy, Gretchen e Ronny, que com coragem e generosidade expuseram sua intimidade, a fim de iluminar o caminho de outros pais, mostrando, através do exemplo, que fragilidades, medos e preconceitos podem ser superados através do diálogo, do respeito e do amor incondicional a tão preciosa singularidade de um filho. Quanto aos antigos amores de Thammy, a fim de proteger suas identidades sem, no entanto, prescindir das histórias de fato com eles vividas, optamos por conferir-lhes codinomes, numa demonstração de compromisso com suas privacidades. Por fim, o nome do livro faz uma homenagem ao inspirador poeta Cazuza, em sua coragem para a verdade dos que não nasceram dentro da norma e até contra a ideia de que exista uma norma. Enquanto houver presente, há esperança. Mundo melhor se faz todo dia.

Marcia Zanelatto

Thammy Miranda- Nadando contra a correnteWhere stories live. Discover now