Capítulo 1 - Um Estranho na porta da frente

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Toda manhã era a mesma coisa, o rock que vinha do apartamento ao lado – quem diabos ouvia rock as oito da manhã? – o barulho da obra do outro lado da rua e o som de buzinas e freadas dos carros lá embaixo. Tess odiava acordar cedo, odiava aquilo mais do que tudo, então todos aqueles ruídos eram a única coisa que a tirava da cama antes do meio dia.

- Bom dia, Barto – ela acariciou a cabeça do cachorro que dormia aos seus pés.

Com os cabelos emaranhados, viu seu reflexo no espelho do banheiro e se assustou com a própria aparência. Ela parecia com alguém que tinha se embriagado na noite passada, embora só tivesse se afundado em uma garrafa de refrigerante e em uma pizza de queijo. Acordar cedo realmente fazia com que ela parecesse como um ser de outro mundo.

Tess era escritora, ou pelo menos era o que ela pretendia fazer da vida. Mas quando pensava na imagem de uma escritora, imaginava uma linda moça sentada em uma bonita escrivaninha de madeira envernizada, neve caindo do lado de fora da janela e um gato persa em seu colo. Ela não era nada disso, era bagunceira e preguiçosa, sua escrivaninha era velha e estava descascada, não havia neve do lado de fora e sim o sol escaldante do verão e é claro, ela não tinha um gato. Ao invés disso, tinha um pug gordinho chamado Bartolomeu, ou Barto, para os íntimos. Vivia em um cubículo que quase não podia ser considerado um apartamento, onde se via roupas atiradas por todos os cantos e uma Torre Eiffel feita com pratos empilhados dentro da pia da cozinha. Tess era como uma bagunça ambulante, mas ela não ligava para nada disso.

Havia um livro no qual ela estava trabalhando, uma história sobre cinco amigos que moravam em uma pensão e que eram muito diferentes dela. Tess odiava pessoas, mas não de um jeito amargo ou psicopata. Ela não era como Thomas, o garoto que morava no andar de cima e fingia ser um vampiro, então fazia visitas frequentes ao cemitério e mostrava presas de plástico para as pessoas na rua. Não, ela não era assim. Ela tentava ser educada com todos que conhecia e se esforçava para ser sociável e conversar. Mas no fundo, bem no fundo de seus pensamentos, ela não os entendia. Ou não entendia a si mesma...

"O que há de errado comigo?"

Ela perguntava isso ao seu reflexo no espelho diversas vezes, tentando entender de onde vinha a esquisitice de sua existência. Ela era fisicamente normal, tinha cabelos ruivos naturais normais, olhos azuis normais, uma boca normal, um queixo normal, um nariz, dois ouvidos... Fisicamente, ela era tão normal que muitas vezes as pessoas nem a notavam, como se ela fosse uma árvore ou um poste ou aquela planta que fica de enfeite no fundo da sala. Mas não era sobre aquele tipo de normalidade que ela falava. Os personagens de suas histórias eram sociáveis e se sentiam confortáveis onde viviam e com quem se relacionavam. Tess nunca havia se sentido assim, embora imaginasse que devia ser bom. Ela sabia que o problema não era São Francisco, a cidade onde havia nascido e morava, nos Estados Unidos. Por vezes, pensou se talvez uma mudança resolveria o problema, ir para um país diferente, uma nova cidade, uma nova cultura. Mas tudo continuava parecendo vazio, pois o problema vinha de dentro dela, a incapacidade de se adaptar era parte de sua existência. Ela sempre se sentiu estranha.

Era por volta das dez da manhã, ela havia verificado seus e-mails e especulado a vida alheia em algumas redes sociais, enquanto o vizinho continuava a ouvir rock a todo o volume. Aquele já era como o som ambiente de seu quarto, ela até mesmo sabia cantar algumas das músicas. O arquivo com seu futuro livro parecia piscar para ela no computador, bem ao lado da cara de Bartolomeu no fundo de tela, mas ela estava com bloqueio criativo, o que era péssimo para qualquer escritor. Ela queria poder lançar alguma coisa e quem sabe um dia ver seu livro em exposição na livraria do outro lado da rua. Mas aquilo era um sonho que cada vez parecia mais distante quanto mais desconfortável ela se sentia com o mundo a sua volta.

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