Capítulo 4 - Sobrevivente

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É estranho como esses momentos conseguem me trazer conforto e apreensão na forma de um sentimento único, como que entrelaçados. Sinto o conforto, por não mais contemplar a tempestade que se aproximava a poucos do lado de fora desta janela, quase negra, sendo agora substituída por um anil cegante; sinto a apreensão, por saber que enquanto eu estiver à mercê desses malditos onze mil metros que me separam do solo, não passarei um minuto sequer sem pensar na probabilidade em ser vencido por eles, temendo que as dezenas de milhões de chances ao meu favor não venham me acompanhar desta vez.

Respiro fundo, mesmo sabendo que de nada irá adiantar. Sinto o ar sintético deslizando até meus pulmões, e por um instante tento em vão concentrar-me em uma fração de minha hematose. Volto a ser Jack, o assassino, e entendo trazer com ele alguns fantasmas os quais nunca fui bom em controlar.

Coloco-me em oração e tento me concentrar. É Matheus assumindo novamente o comando dos meus sentimentos.

Uma pequena variação no ruído do motor de imediato tira-me do transe que sei que ainda não tinha conseguido alcançar. Respiro fundo, e novamente, o motor açoita minha tentativa de controle.

É engraçada esta sensação. O medo da morte diante uma missão encomendada por ela, e ainda, se o velho estiver certo, um serviço nobre ao Senhor a quem devo toda a eternidade frente à remissão que desejo alcançar.

Um demônio, uma salvação.

É assim que devo pensar. É nisso que devo me concentrar. Isso me trará força para às vezes que me perguntar se o que estou fazendo é o certo, se não estou rumando para uma arapuca armada pelos que me desdenham.

Peter Adams? Será?

É assim que devo prosseguir. Tomei uma decisão depois de muito refletir, e a bela voz me convencera que ao menos devesse tentar. Falou-me pouco, eu sei, mas conseguira absolutamente me convencer.

Porque me falou novamente, mulher? Quem é você?

Por um instante, penso em algo bom. Minha loucura me leva a floridos jardins, entre amarelos e vermelhos, talvez o mesmo local em que todos se canalizam ao pensar em que venceram esta etapa, e passaram pela prova da carne.

É assim que devo pensar, é nisso que devo acreditar. É o que me levará para a salvação, ou ao menos, caso esteja eu fazendo parte de um jogo sujo, me fará suportar a remota chance matemática de este robusto avião cair.

— Aceita alguma bebida, senhor? – meus devaneios são interrompidos pela simpática aeromoça. Lembro-me de momentos como este, em que sacava um meiota preenchida com o melhor whisky que eu pudesse comprar, e me fartava durante o caminho a todos os lugares os quais tivesse que viajar, amortecendo com o álcool a minha alma e confundindo meus temores de alturas.

— Sim, obrigado. Um pouco de suco, por favor – respondo educadamente à jovem. Gostaria de tomar um cálice de vinho, na verdade, mas sei que este pedido seria em vão. Não viajo mais de primeira classe como costumava em algumas ocasiões. As poucas viagens que fiz nesses últimos dez anos em que me tornei um padre foram, digamos, modestas. Sem dúvida, entre elas, o encontro dos cardeais que aconteceria na cidade do Rio de Janeiro teria sido a mais interessante, pois fora por meio dela que fui aceito perante meu Senhor, quando senti sua presença pela primeira vez, onde se deu início à minha caminhada de fé.

Não teria eu sido convencido por nenhum dos que me acompanhavam naquele voo, muito menos tocado por belas palavras de um sacerdote qualquer durante o nosso encontro. Na verdade, o encontro dos cardeais não acontecera naquele ano, devido a um terrível desastre ocorrido pela queda de um avião, que rumava à capital brasileira da luxúria. Um acidente lastimável, onde uma aeronave comercial carregando duzentos e cinquenta e seis passageiros, e destes, quarenta e seis padres, caíra durante o percurso devido a problemas técnicos em uma de suas turbinas.

Duzentos e cinquenta e seis pessoas à bordo.

Duzentos e cinquenta e cinco mortos.

Um sobrevivente.

Os noticiários do país, durante semanas, deram como manchete o fantástico caso do padre espanhol que sobrevivera àquilo que em tese seria dado como morte certa, mesmo ele permanecendo em coma profundo durante exatos quarenta e sete dias.

Dias, que para mim, soaram como minutos, lembro-me bem, e que pela primeira vez tive uma mensagem que me fora entregue por ela.

A primeira, entre duas.

Quando retornei do estado de coma, sabia que ali o velho Jack teria morrido, e que Matheus, meu nome de batismo que já usava há algum tempo durante o meu falso sacerdócio, teria sido então aceito pelas leis de Deus. A partir daquele momento o meu coração tornou-se o de um homem de fé, e mesmo burlando as leis burocráticas do Vaticano, fiz dos meus falsos documentos a minha mais permissiva identidade sacerdotal diante de meu pai, e que lei alguma do homem poderia sobrepor-se àquilo pelo qual eu sabia ter sido convocado.

— Seu copo, senhor!

O retorno da bela aeromoça pelo corredor central do avião mostra o quão meus pensamentos são aliados durante quase todas às vezes que saíra do conforto de minha paróquia e coloco-me às alturas. Lembranças de um passado pouco comum me fazem sair em uma viagem quase espiritual, o que eu julgo, ao menos nestes momentos, algo de grande valia.

E assim me coloco novamente a fazer. Refletir sobre minha vida, ou sobre o que Deus realmente deseja dela. Quem sabe entre as imagens do rosto rasgado do velho Lucas e a lembrança da bela voz, que tenho por certo que agora me persegue, venha eu a encontrar um pouco de espaço para descansar minha mente e colocar-me a dormir.

***

Matheus - A redenção de Jack (livro 2)Where stories live. Discover now