Capítulo 10 - O padre, o velho e o demônio

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O tempo é algo fechado, sem volta, e nem mesmo a mais sábia ciência pode um dia mostrar o caminho contrário dos ponteiros de um relógio. Muitos tentaram explicar, poucos chegaram a teorias cabíveis, e ninguém deste mundo conhecido teria desfrutado uma única vez dos momentos palpáveis de um passado distante sentido por sua carne e ossos. Mas entendo que, diante da imagem que se constrói à minha frente, a sensação de um retorno a épocas distantes faz-se inegável e surpreende-me agora por figuras lançadas de todos os lados, assim percebo lentamente junto aos passos acanhados que desprendo e que me seguram neste momento. Fazem quinze, talvez vinte anos. Ou o dono deste lugar se faz de um saudosismo doentio, tão doente quanto os que aqui se encontram preenchendo o peculiar recinto, ou eu, o servo matador de demônios, teria trespassado por uma breve fenda temporal ofuscada pela velha e apagada porta de madeira que acabara de atravessar.

A canção não me recordo o nome, mas me leva ao momento em que era tocada por todos os cantos de um mundo distante, cantada na voz de um louco que não conseguira suportar a própria dor da sua mente insana, presenteando-a naquela mesma década com uma bala, talvez parecida com essa que trago embaixo de meu paletó. Os quadros na parede, o desenho do balcão logo à frente. Quase tudo me leva para àquela década, na qual eu, ainda jovem, já desfrutava de um currículo assassino, o que não impedia em me fazer valer por um gosto apurado pela boa música e por caras bebidas. As bandas emergentes de Seattle trouxeram uma nova cara para os anos que moldaram aquele período, e logo ganharam o mundo e espalharam toda uma cultura singular de uma movimentada região do noroeste americano. A melancolia vencera as maquiagens, e um espírito sujo e suicida passou a vagar pela mente de uma juventude em forma de frases moldadas e poesias quase gritadas. Os trajes dos lenhadores tornaram-se mantos obrigatórios para um rebanho envenenado pelas novas regras do rock, e até hoje fazem parte do vestuário para muitos os quais se fizeram fiéis seguidores dessa linha do tempo. E é isto que vejo aqui, pessoas estagnadas, envolvidas entre flanelas e cigarros acessos diante de copos e petiscos baratos. Posso sentir o cheiro sujo, se não azedo, exalado por detrás de amontoados de cabelos longos e propositalmente, mal - cuidados. A expressão em seus rostos, a melancolia forçada, tudo se faz casado com a arquitetura que agora me envolve e me devolve ao tempo passado. Um ambiente de muito bom grado para um demônio, aliás, feito que Deus não se rebaixaria a um lugar como este. Entretanto, a minha besta, aquela descrita pelo estranho bilhete da bela mulher no café na tarde de ontem, não a percebo nesses breves segundos os quais aqui me encontro, e o que me resta, como em um ritual ressuscitado dos meus passos assassinos, é aguardá-lo apreciando uma dose de conhaque e me perdendo pelas fumaças de mais um dos meus nobres charutos. Ele não está aqui, me faço inexplicavelmente certo disso. Talvez tenha esse dom, o de sentir a presença destes renegados. Talvez.

Escolho uma mesa à esquerda do centro, a que me coloca em posição de espreita para toda a extensão deste bar, embora sua dimensão diminuta poderia ser varrida por olhos a partir de qualquer lugar que escolhesse. De onde estou, porém, posso ver a porta por inteira, fitá-la direta ou de soslaio, e qualquer coisa que venha a atravessá-la nestes próximos instantes não passará despercebido por mim. Agora somos nós, eu e minhas duas faces, a espera daquilo que os segundos vindouros teriam nos reservados. Deveria estar temeroso, pois a chegada do demônio está para ocorrer em breve, e junto a ele, gozando de uma astúcia que deduzo sobrenatural, poderia estar por vir também um enviado da minha morte. No entanto confesso, não sei a quem, que não consigo me encontrar assim. Devo talvez ao efeito da eminência, a adrenalina colocando meu corpo em um estado de latência vigiada. O pavor é um reflexo da mente, e esta, fazendo jus ao seu papel de um centro nervoso orgânico, rege toda minha homeostase como um sublime maestro ensaiado.

Matheus - A redenção de Jack (livro 2)Where stories live. Discover now