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Comunicado: sou contra qualquer tipo de preconceito e racismo, porém, devido a época (a escravidão foi abolida em 1888), os personagens usarão palavras de baixo calão. Entendam que isso é uma crítica por minha parte :)

Paranaguá, 1869.

Diziam que a casa de número 666 tinha uma maldição. Lendas circulavam relatando que ali habitava um ser com anomalia, o que era um grande tabu para o século XIX. Porém, o que realmente não sabiam era que ia além disso.

Ali morava uma família da burguesia. O homem aparentava ter 37 anos, enquanto a mulher ficava com seus 30. Eles carregavam um dos sobrenomes mais fortes da cidade, sendo conhecido por todos. O homem, que se chamava Antônio Barcellos, era um sujeito que tinha grande potencial em seus negócios, enquanto a sua mulher, Laura Barcellos, ficava a sua mercê cuidando dos filhos. Ela não tinha voz na casa, era a submissa do marido e agredida caso aumentasse a voz. Não podia ter os mesmos direitos, por mais que procurasse pelos seus benefícios. Achava que aquela vida era o real significado do inferno, mas ela ainda não havia conhecido o martírio.

Era Novembro quando tomou a decisão bruta. Depois de tanto ouvir críticas das moças da cidade, relatos de traições por parte do marido e muitas agressões contra o seu corpo, a mulher planejou uma vingança. O seu plano era forçar uma morte para vê-lo sofrer, pois tinha a certeza que ele não conseguiria viver sem ela, mas isso não deu certo. Se Laura fosse fazê-lo sofrer, teria que pagar as consequências em seguida.

Foi numa noite sombria que fez o ato. As nuvens cobriam a mansão e uma tempestade se aproximava, deixando o lar mais taciturno. A lua cheia continuava intacta e tomava o céu com seu brilho, exalando todas as energias do luar. O relógio marcava onze e meia, e Laura conseguia sentir cada emoção percorrendo pelo seu peito. Andou até a sala, onde o marido estava sentado, e o acompanhou, aconchegando-se ao seu lado. Antônio tomava um vinho forte enquanto o silêncio prevalecia sobre o cômodo.

— Adoro quando tu usas essa roupa, Laura — o marido disse. — Minha doce mulher, pareces uma serva.

— Sabes que eu odeio quando tu falas assim, Antônio — Laura rebateu, mas levou um tapa no rosto. Isso aumentou ainda mais a sua ira, deixando seus olhos vermelhos. Ela não estava entendendo o que acontecia com si mesma, mas a vontade de vingança falava mais alto em sua mente.

— Tu não tens direito aqui. És minha serva, assim como as outras milhões de criadas que trabalham para mim.

Laura fervia por dentro. Nessa altura do campeonato, ela não sentia ciúmes, e sabia o caráter do marido. Antônio, antes de pedi-la em casamento, demonstrava ser um homem compreensível e cuidadoso, mas na verdade era hediondo e repulsivo. Burlava as pessoas dizendo que seus negócios eram para fins agrícolas e que tinha terras em São Paulo e Minas Gerais, mas na verdade ele também trabalhava na venda de escravos. Laura odiava isso, e sempre quando podia ajudava na fuga de um prisioneiro, alegando em seguida que o serviçal havia morrido. Da última vez que fez isso, Antônio descobriu, e Laura foi castigada com severas marcas em seu corpo.

Agora não mais.

— Certo, senhor — Laura replicou cínica e sorriu. — Apenas serva.

Ela sentou no colo de Antônio, que estava com os braços abertos no sofá. Pegou o copo de vinho e colocou na mesinha que havia ao lado. Antônio já estava com a mente turva devido o álcool, e quase dormia de tanto cansaço. Seus olhos pesavam, e mal conseguia segurar a atenção na sua mulher, que ainda continuava em cima de si.

— Fale de novo o que eu sou, Antônio — Laura disse olhando perpétua para ele, que jogava a cabeça para trás devido ao pequeno deleite que sentia.

— Serva — sussurrou Antônio. Laura, por sua vez, olhou o relógio, que marcava meia noite em ponto. Era a hora.

A mulher, que segurava uma faca com a mão direita, apertou o objeto prateado e mergulhou o utensílio no vinho. Era o sangue.

— Tu vais arder nas trevas, Antônio — Laura sussurrou em seu ouvido, colocando a faca perto de seu coração ainda sem perfurá-lo.

— O que estás dizendo, Laura? — Antônio exclamou, mas não teve força para se mover. — Tu me amas, não amas?

— Eu quero te ver sofrendo. Digo isso por todas as pessoas que querem ver a sua morte.

Uma camada de represália tomou o coração de Laura, que estava envolta de pensamentos importunos. Ela não ligava no depois, apenas no agora, por isso deixou o momento de fúria tomar o seu psicológico, ficando fora de si. Ela tirou a faca do coração de Antônio e passou pelo seu braço descoberto. Sorriu vitoriosa e perfurou a pele branca dele, vendo o sangue sair vagarosamente pelo pequeno corte. O ferimento ia do ombro até o pulso, deixando uma grande linha de dor. Antônio urrou de sofrimento pela tortura que Laura fazia, mas aquilo não era nem o começo. A mulher saiu do colo dele e deu a volta no sofá, pegando o copo de vinho e tomando um gole. Ainda com a taça em mãos, Laura passou atrás do corpo de Antônio, se curvando sobre o seu ouvido.

— Tu vais se arrepender — Antônio arfou, mas Laura mal conseguiu ouvir a sua voz. — Irão te castigar.

— Meu amor, isso não irá acontecer — disse de forma irônica. Laura observou a cor vermelha do vinho, virando-o em seguida na ferida exposta de Antônio. Não aguentando a dor devido o álcool, ele fechou os olhos e tentou se levantar do sofá, mas suas pernas não o obedeciam. — Não penses em sair do lugar, querido.

Laura jogou com força a taça de vinho no chão, pisando descalça nele e sentindo o sangue da sola de seu pé sair aos poucos. Ela não ligava para aquilo, só queria chegar no fim do ato. Não aguentando mais a demora, ficou de joelhos no chão e olhou para Antônio, que tinha lágrimas nos olhos.

— Eu vou acabar com a sua vida. Por mim, pelas minhas feridas e pelas as outras mulheres que tu já fizeste sofrer.

O relógio alarmou, soltando o som de horas exatas. Laura ergueu a faca, deixando o sangue misturado ao vinho escorrer aos poucos pelas suas mãos. Ela escalou o corpo de Antônio, olhando pela última vez para aqueles olhos azuis.

— Laura...

— Antônio.

E essas foram as últimas palavras do casal. Laura perfurou o coração de Antônio, deixando o sangue sair de forma célere de seu corpo. O homem tentou relutar contra as facas, mas estava fraco. Isso só fez com que Laura perfurasse cada vez mais o corpo dele, permitindo o sangue espirrar em seu rosto. A mulher sentia a pulsação de seu coração se acelerar, e um poder de autoridade liderou sua cabeça. Ninguém mais levantaria a mão a ela.

Laura se ergueu e olhou o corpo de seu marido. Jogou a faca no chão junto com o vidro da taça. Andou em direção da janela e viu a lua, que reluzia sua energia a ela. Sorriu e foi em direção ao espelho que havia na sala, olhando seu aspecto. Seus cabelos estavam mais brilhantes do que nunca, dando um semblante de renovação.

Falavam que quando uma pessoa realiza um ato querendo aquilo com uma força e destemor, seu desejo não se torna algo frívolo. Quando efetua com intensidade, por mais que o pedido seja quase impossível, a pujança transforma seu vigor para a magia.

Laura tinha o sortilégio, e iria fazer de tudo para acolher os pedidos de almas que aclamavam por vingança.

Almas SilenciadasNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ