III

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Paranaguá, 2016 — 00:00.

Era meia noite e ponto quando Guilherme abriu os olhos. Seu corpo estava mais rígido, e não lembrava de como tinha parado naquela cama desconhecida. Queria saber que cômodo era aquele que se encontrava, mas imaginou que fosse mais um quarto de motel fútil e barato. Quando levantou da cama, quis deitar novamente, mas um sussurro fez com que ele negasse seus instintos. Dessa vez ele estava mais sóbrio, e não delirava.

— Guilherme — a voz disse como um assopro. Ele reconhecia aquele tom doce de algum lugar, e se sua mulher já não estivesse morta, diria que ela estava ao seu lado. — Siga-me.

O homem levantou da cama e olhou ao redor. A casa escura demonstrava um medo que ele não tinha sentido antes, e queria sair do local o mais rápido possível. Por isso ele abriu a porta e desceu as escadas, indo em direção da saída. Porém, antes de chegar ao destino, uma sombra preta passou por ele. Perplexo, parou e ficou esperando mais alguma coisa acontecer. Ele não conseguia sair de lá, algo o chamava para o interior da mansão, como se estivesse sendo convocado para algo.

— Guilherme... — a voz continuava. Ele colocou a mão na cabeça e se ajoelhou no chão, tentando fazer com que aquele som saísse de seus ouvidos. Mas isso não aconteceu. Os ruídos ficavam cada vez mais fortes, deixando-o com uma enxaqueca. Guilherme se levantou e andou até a sala tropeçando em seus próprios pés. Sentou no sofá e fechou os olhos com força, querendo que o pesadelo sumisse. — Estou aqui.

Ele sentiu um toque doce em seus ombros. Abriu os olhos e viu um vulto em sua frente. A visão de Guilherme demonstrava medo ao ver o que estava perto de si. Ele levantou espantado do sofá, esbarrando em um objeto de vidro que estava na mesa de centro.

— O que é você? — Guilherme perguntou. O vulto se aproximou dele e segurou os seus pulsos, fazendo com que o homem prestasse atenção em cada movimento da sombra sem face. Aos poucos o rosto da figura indistinta foi se transformando numa fisionomia conhecida por Guilherme, deixando de lado o aspecto de horror e colocando uma bela moça.

Era a sua mulher.

Guilherme não conseguia dizer algo. Todas as palavras foram substituídas pela tristeza ao lembrar do incidente que a sua mulher sofreu. Ele ainda buscava o cara que fez isso, mas não encontrava nenhuma pista que o levasse a verdade. Talvez aquilo viesse a tona agora.

Ele correu em direção a sua amada, mas quando chegou perto para abraçá-la, ela desapareceu. Em seu lugar, a neblina prevaleceu, deixando Guilherme confuso.

— Ana, por favor, eu preciso de você — Guilherme disse. A sua voz estava fraca por causa do choro guardado em sua garganta, mas não podia soltar as lágrimas. Ele faria de tudo para tê-la novamente. Queria tocá-la e dizer que a ama como se fosse a última coisa que pudesse fazer antes de morrer. — Eu preciso saber quem te matou. Me diga, Ana. Preciso fazer a punição por você.

Silêncio.

Guilherme não aguentava mais aquela dor e precisava ouvir a voz dela novamente, mas isso não aconteceu. Ao invés disso, sua visão foi inundada por uma luz branca, transformando seus pensamentos e levando-o as suas memórias mais profundas. No seu desvario ele viu o casebre que morava com a mulher junto de seus filhos. Ele estava bêbado, e cambaleava até a cozinha. O seu cérebro estava inconsciente, e fazia os atos involuntariamente. Guilherme havia pego o álcool e jogado no quarto onde dormia, logo em seguida pegando o fósforo e o acendendo.

Guilherme era o culpado pela morte de sua família, tudo isso por conta da bebida e traições.

— Não — soltou quando as reminiscências saíram de si. Ele não concordava com o devaneio que teve. — Eu não sou quem você acabou de me mostrar. Seja quem for, não sou eu. Nunca faria isso a minha família.

— Você fez, Guilherme, e enquanto eu não fizer isso, não irei me acalmar — Ana se pronunciou. Ela apareceu novamente na frente do seu antigo marido, que tentou se afastar. Porém, a força dela foi maior, fazendo-o cair no sofá.

Era o mesmo ritual.

O espírito de Ana ainda conseguia recordar de tudo o que Guilherme fazia para ela. Ele a agredia, batia em sua família e sempre deixava feridas brutas em sua pele. A mulher detestava a miséria que vivia, além do nome sujo que tinha por causa do vício do marido. Ela não aguentava mais.

— Ana, eu imploro, deixe-me viver — o homem replicava, mas a alma de Ana não se movia.

— Você se lembra disso, Guilherme? — perguntou. Ele ficou confuso com a pergunta, não entendendo a que ponto queria chegar. Ana, por sua vez, deixou o seu espírito se modificar, ficando com a metade do rosto queimado. A sua face tinha um aspecto ardente e vivo, deixando a sua carne ainda crua a mostra. Ana queria mostrar o que Guilherme havia causado em sua pele. — Lembra do meu rosto liso, de todos os beijos na bochecha que me dava antes de dormir? Por que, Guilherme? Por que resolveu marcar minha alma?

Guilherme não respondeu e fechou os olhos, preferindo não ver as feições de Ana. Ele havia se colocado no próprio pesadelo, onde não conseguia sair.

— Abra o olho, querido, veja-me. Sinta-me — Ana sussurrou antes de encostar na pele de Guilherme. Suas mãos ardiam e estavam em chamas, deixando marcas pela derme do homem. Tudo o que ele conseguia sentir era cada veia que tinha saindo de si. Sentia os cortes sendo feitos profundamente pelo seu corpo, se intensificando cada vez mais a ponto que tentava viver.

Guilherme pressentiu uma dor insuportável em seus braços, e quando abriu os olhos viu a sua carne exposta. Não conseguiu ver mais ninguém a sua frente, e pensou que havia acabado. Porém, ele sentiu um vento gelado em sua nuca, seguindo de uma pressão em seu pescoço. Não estava conseguindo respirar, e ficava cada vez mais sufocado. Seus olhos reviravam por causa da asfixia que sofria, e seu corpo debatia conforme a angústia aumentava. Ele gritava de sofrimento e remorso, se culpando por cada pecado cometido, mas sabia que aquilo ia ser em vão, pois não conseguia se mover. Seus membros ficavam cada vez mais quietos, deixando a paralisia tomar conta da corpulência. Sabia que aquele ia ser seu fim.

Uma pontada fez com que o corpo de Guilherme fosse para frente num só impulso. Ele conseguia sentir o coração batendo cada vez mais forte, latejando e saindo de si. A amargura foi tomada pela sensação de sentir seus órgãos rasgando vagarosamente. Todo o sangue de Guilherme saía de seu corpo. Sua aparência, antes formosa, estava disforme. Os seus lábios eram brancos e sem cor, além de ter o olho vermelho e exasperado. Qualquer um que o visse saberia que ele não estava dormindo; ele estava morto.

Ninguém estava jogando com ele. Guilherme brincava com a sua vida o tempo todo, duvidando de todas as forças e maltratando de tudo que se voltasse a ele. Sempre foi assim, e as coisas apenas acumularam e eclodiram. A única certeza que Guilherme teve antes de morrer foi de ter visto o rosto de Ana queimado. Seus olhos, que antes eram azuis, tinha uma coloração vermelha como o sangue.

O espírito de Guilherme virou apenas mais um no meio das almas silenciadas.

Almas SilenciadasWhere stories live. Discover now