Capítulo 38

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1982

POV Celleste

Tentei esboçar o meu melhor sorriso de boas-vindas enquanto mais uma prima em segundo grau cruzava a entrada do quarto.

- Meu deus, é tão linda, a minha pequenina! – Exclamou, avançando a passos largos na minha direção, com os braços em riste prontos para lhe pegar.

Eu sei que é linda. E minha. E não estou minimamente feliz por fazê-la passar de braços em braços nos últimos dois dias. É egoísta da minha parte, bem o sei, mas gostava de poder estragar a minha filha de mimos sem ter de a partilhar com um sem-número de familiares sedentos de bochechas gordas e cheiro a bebé.

- Prima Celleste, tome nota! Nunca estenda a roupa da bebé à luz da Lua...está provado que adoecem três dias depois!

Suspirei interiormente antes de lançar o sorriso relativo a sugestões e conselhos de maternidade: um cantinho arrebitado de condescendência e um olhar de aparente agradecimento. As indicações prolongaram-se por aquilo que me pareceu uma infinidade de tempo, transversais a todas as áreas possíveis e imaginárias, desde a higiene, alimentação, transporte da criança, e chegando mesmo à própria educação primária: pública ou privada? Complementá-la com aulas de piano ou equitação?

Mantive o meu sorriso ensaiado durante todo o discurso, concordando ocasionalmente com um aceno de cabeça, embora a minha vontade fosse exprimir a indiferença perante tais disparates.

- Mas Celleste, sempre pensei que fosse chamar-lhe Elizabeth...como a bisavó...mas vocês, jovens, já não querem saber dessas coisas para nada... a família está a perder a sua importância...

O tom de reprimenda é tão palpável que tenho de recorrer a toda a minha paz de alma para não a mandar passear. Sempre soube que a família do Henry era tradicional demais para os dias de hoje, que valorizam comportamentos, atitudes e decisões que no meu entender estão completamente desajustadas da realidade atual, mas ainda assim, sempre aceitei isso com muita consideração e respeito. Além do mais, o facto de vivermos em Carbis Bay, que não prima propriamente pela população de mente aberta, é também factor explicativo deste "fenómeno-Mary", como o meu pai costuma dizer, e que mais não é do que a tendência generalizada para todas as "Marys" cá da zona – que só por acaso haverão de ser primas do Henry – bisbilhotarem até ao tutano as vidas dos outros.

- Hmmm, prima, é melhor deixarmos a Celleste e a bebé descansarem, têm sido dias muito intensos desde que ela veio ao mundo! – Disse o Henry, arrastando-a cuidadosamente até à saída, enquanto lhe retirava, ainda mais cuidadosamente, a nossa filha dos braços gordos e cobertos de bijuteria barata.

- Certo, certo, mas voltarei em breve e trarei comigo o raminho de lavanda para a tal reza de que falei! – Prometeu, enquanto atravessava a porta da saída atirando beijinhos ao ar.

Quando a porta finalmente fechou, troquei um olhar de alívio com Henry, que logo se sentou ao meu lado na cama, com a bebé nos braços.

- É perfeita. – Sussurrou pela enésima vez, sorrindo-me com os olhos a transbordar de amor.

- É mesmo. E é nossa. – Devolvi, divertida, pronta para um momento de verdadeiro sossego com a minha família.

Um bater firme na porta deitou essa perspetiva por terra, e preparava-me para mais uma sessão de sorrisos ensaiados e milhares de sugestões do manual da vida para recém-mamãs, quando uma voz reconhecida me fez sorrir genuinamente.

(Un)forgettableWhere stories live. Discover now